UMA QUESTÃO DE HONRA
Outubro 16, 2018
J.J. Faria Santos
É como se um canhestro argumentista de um filme do Steven Seagal quisesse fazer uma adaptação de um romance de John le Carré. O resultado seria uma intriga política manhosa, envolvendo o desaparecimento de material militar, mais tarde devolvido na sequência de uma conspiração que envolveu, pelo menos, a Polícia Judiciária Militar (PJM) e a GNR de Loulé. O conluio implicou ocultação e simulação, para além do atropelo de competências e normas legais.
Aparentemente, um conjunto de militares atreveu-se a negociar com um criminoso, atribuindo-lhe imunidade, em nome do interesse nacional, tal como eles o entendem. Como bónus, obtinham também a satisfação pessoal de ver a PJM retirar à sua homónima civil os louros da recuperação do material furtado. O espírito de corpo foi, assim, perversamente transformado em corporativismo. Tendo em conta que o princípio da autoridade formal é inerente à condição militar, interrogo-me até que nível da hierarquia terá a informação ascendido e, sobretudo, até que ponto o preceito da obediência obnubilou a análise fria e racional de uma acção inadmissível. E o próprio chefe de gabinete do ex-ministro, ter-se-á sentido dividido entre a sua condição de militar e a lealdade para com quem o nomeou?
Na verdade (e na mentira), este episódio (burlesco, rocambolesco) mancha toda uma instituição que, por vezes, permite que alguns dos seus membros utilizem a nobreza da sua missão para resvalar para a arrogância, para a superioridade moral. Esta displicente presunção pode levar uma instituição com algum capital de queixa a destratar os civis, incluindo o ex-ministro da tutela, que, por sua vez, se foi fragilizando pela fatal mistura de alguma inércia, excessiva parcimónia no uso dos seus poderes e uma perceptível ou real acumulação de manobras de autodesresponsabilização.
No filme Uma Questão de Honra (1992), a dada altura, pressionado em tribunal, Jack Nicholson, na pele do coronel Jessep e no seu habitual estilo incisivo, explica que há quem não consiga lidar com a verdade. O que é preocupante em todo o episódio de Tancos é a predisposição que revela uma instituição, que a toda a hora invoca, e na maior parte das vezes muito justamente, o seu código de honra, para manejar a mentira e o ludíbrio.