UMA MULHER COM PASSADO E UM HOMEM SEM FUTURO
Junho 18, 2014
J.J. Faria Santos
"Crystal Ball" (circa 1930) de George Hoyningen-Huene
(Courtesy of www.bertc.com)
Ela, dizem, tem um passado. Quem o diz, di-lo não com o intuito de segregação mas como proclamação de uma certa superioridade moral. Mesmo que, agora, ela seja uma “respeitável” sexagenária, esposa e mãe, persiste, ainda que bastante atenuado, o ferrete da libertinagem. A sua preferência por uma maquilhagem carregada no rosto redondo, e a predilecção por saias compridas travadas, dão-lhe um ar coquete, com o seu quê de vintage, fazendo-me lembrar uma versão mais luminosa da Kate de A Leste do Paraíso (a actriz Jo Van Fleet, que interpreta o papel de mãe de Cal Trask/James Dean), no filme dirigido por Elia Kazan. Cumprimenta as pessoas com um sorriso leve, onde podem não estar ausentes traços de ironia. Adivinha-se na sua postura um certo suplemento de perspicácia, como se todo o seu passado, com glórias e misérias, lhe tivesse fornecido uma compreensão acrescida da natureza humana. E este pormenor permite disfarçar um certo ar gasto (o adjectivo pode ser um pouco cruel, mas é o resultado da acção inglória de se querer perpetuar a frescura da juventude à força de cosmética) e leva-nos a concordar com Oscar Wilde (“Gosto de homens que têm um futuro e de mulheres que têm um passado”).
A história não sendo idêntica tem traços comuns ao enredo da série Segurança Nacional. O sargento americano Bowe Bergdahl foi alvo de um resgate sob a forma de troca de reféns (cinco líderes taliban foram a contrapartida). A controvérsia, para além da magna questão de se poder considerar que negociar com terroristas encoraja os raptos, foi suscitada pelo facto de Bergdahl poder ter desertado e estar a receber o tratamento de um herói. Aparentemente, a 30 de Junho de 2009, ele abandonou as instalações militares no Afeganistão onde tinha sido colocado há pouco mais de três meses, deixando, dizem alguns relatos, um bilhete de despedida, e pouco mais de vinte e quatro horas depois uma rádio taliban anunciava a captura de um soldado americano. Um militar que serviu na mesma unidade, citado pela CNN online , mostrava-se indignado por ter ocorrido uma troca de prisioneiros por alguém que “desertou em tempo de guerra, o que é um acto de traição”.
O que se terá passado durante os cinco anos de cativeiro permanece obscuro. Segundo o relato da revista Time, “alguns sugerem que ele se deu bem com os seus captores; outros dizem que ele tentou escapar em 2010 e que desde aí era acorrentado durante a noite”. David Von Drehle, o jornalista da Time, interroga-se se no caso de um soldado merecer “não uma parada mas um julgamento” que tipo de ponderação este facto introduziria na avaliação do risco, “ou no preço a pagar pelo resgate”, inerente à política americana de não deixar nenhum soldado para trás.
Quanto a Bergdahl, com presumíveis sequelas psiquiátricas e enfrentando a hostilidade e a desconfiança dos seus compatriotas, o seu futuro não parece brilhante. Fluente em pashtun, tem agora dificuldades em expressar-se em inglês. Se ele concordar com Pessoa, vai ter de revigorar o seu patriotismo.