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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

UMA AVENTURA NO HIPERMERCADO (CENAS SOLTAS) II

Maio 13, 2015

J.J. Faria Santos

Há um perfume a Almodóvar no ímpeto com que ela percorre os corredores do hipermercado com o folheto das promoções na mão e o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo a baloiçar. Também ajuda que ela tenha algumas semelhanças com Rossy de Palma. Sozinha (quase sempre), ou acompanhada por uma adolescente (filha?), é vê-la localizar os produtos e atirá-los para o carro sempre em ritmo elevado. Quase parece alucinada (enfim, estou a exagerar…), concentrada, talvez. Na caixa, enquanto aguardo a minha vez, já não me parece tão enérgica a recolher os bens que se prepara para pagar. Bom, até uma frenética personagem almodovariana precisa dos seus momentos de descompressão…

 

Não estou certo que seja um grande avanço civilizacional, ou uma conquista do feminismo, mas é apreciável a quantidade de homens que se aventuram nas compras de mercearia. Atraídos pela secção de ferramentas, de produtos para o carro ou pelas promoções dos packs de cerveja? Entusiasmados por uma independência recém-adquirida na confecção dos alimentos, numa altura em que todos os homens têm a ambição de ser chefes de cozinha? Não importa. Seja na versão lobo solitário entusiasmado com a promoção do Monte Velho, na de marido adorável que acompanha a mulher, que se esmera em vão ao tentar sossegar a criancinha a berrar a plenos pulmões encavalitada no carrinho de compras, seja ainda no papel de jovem pai com ar enfadado, enquanto o filho, dois passos atrás dele, admira a miniatura de Ferrari que acabou de extorquir graças à ameaça de beicinho.

 

São uma fonte de irritação. Que tenho muita dificuldade em disfarçar. São aquelas pessoas que estacam em frente a um produto e ali ficam a adorar o bezerro de ouro, bloqueando a passagem com o carro das compras. Quase sempre se desfazem em desculpas quando entoo um “Dá-me licença?”. Recebem a delicadeza com estranheza. Como se esperassem um rancoroso “Deixe-me passar!”, ou ser abalroadas com alguma brutalidade. É assim tão difícil encostar o carro para que ele não constitua um impedimento à circulação?

 

Os saltos parecem demasiado altos, a saia demasiado curta. Parece excessivamente produzida para vir às compras. Estará arranjada para um compromisso profissional ao fim da manhã ou acabou de chegar de uma longa jornada pela noite? Cruzámo-nos num primeiro corredor. Passo para o seguinte. Detenho-me numa minuciosa ponderação em frente aos desengordurantes para a loiça. Concentrados e desconcentrados. Desisto. Faço uma inflexão para a esquerda e estaco em frente aos detergentes para sanitários. Pego em dois ou três embalagens de gel com lixívia de marca branca, produto que, nessa manhã, parece ter tido bastante saída. Quando regresso aos produtos para a louça, noto, pelo canto do olho, que ela está a tentar alcançar as escassas embalagens de gel que ainda restam. Os saltos não são suficientemente altos para a impulsionar, a saia sobe mais uns dedos com o movimento. Ofereço ajuda. Entrego-lhe um exemplar. “Estava a ver que não deixava nenhum para mim”, diz ela, sorrindo, enquanto me pede mais um. “Estou certo que existem mais em armazém”, retorqui. Agradeceu, e eu acedi ao mundo maravilhoso dos limpa-vidros, enquanto ela se eclipsava para o corredor dos frescos.

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