UM RUMOR DE ROSAS ENLOUQUECIDAS
Maio 07, 2014
J.J. Faria Santos
Poeta, tradutor, ensaísta, romancista, dramaturgo, cronista, gestor cultural, ex-governante, comentador político, Vasco Graça Moura atraía, sobretudo mas não só nesta última função, acesa polémica – “Costumam-me chamar caceteiro, trauliteiro e arruaceiro” (entrevista ao Expresso, 30/12/1995). Justificou-se com o direito à liberdade de expressão – “Exerci, com alguma eficácia, um direito que é o do cidadão pensar e exprimir-se” (entrevista ao Público, 10/12/1995) – e com o repúdio da hipocrisia – “O que não sou é hipócrita – digo e assino o que penso” (idem).
Exerceu esta prerrogativa abundantemente. Considerava-se um “moderado, com uma overdose de rigor”, e politicamente de “centro-esquerda” com “uma aversão visceral à instabilidade”. Nunca escondeu afinidades, desprezos e convicções. Das entrevistas aos orgãos de comunicação social acima referenciados, é possível extrair algumas amostras: afirma que Cavaco Silva “é a figura histórica mais importante do pós 25 de Abril”; assume que tem “o maior desprezo por toda a escrita do tipo Lobo Antunes & Cia.”; recorda que considerava os anos 60 (do século passado) “uma boa merda”; e compara a decisão de Bill Clinton de admitir a entrada de homossexuais no Exército à colocação de “um alcoólico a guardar um armazém de vinhos”.
De todas as suas facetas, a que parece ter reunido maior consenso (algo relevante para os outros, seguramente não para ele), se excluirmos a de tradutor, é a sua condição de poeta, concretizada numa obra versátil, erudita, aqui e ali permeável à ironia e mesmo ao humor. Da minha selecção irredutivelmente pessoal (de um universo bastante limitado, que se reduz ao volume Poesia 1997-2000, edição do Círculo de Leitores), ouso destacar dois excertos de dois poemas. O primeiro, retirado de como num filme, faz-me evocar o canto de Nina Simone, Billie Holiday ou Concha Buika: “houve sempre uma voz rouca e abandonada / para falar de vida e desespero, // num blues, num fado, num tango, num flamenco / por esquinas e bares, é quando fumo e álcool / têm um travo certeiro na garganta / e os olhos um fulgor líquido intenso. // é quando a solidão se encorpa nas palavras / e as palavras se encadeiam no destino / e o destino infeliz pode cantar-se então / e as metáforas têm um rumor de rosas enlouquecidas.” O segundo, que corresponde aos oito versos iniciais de a explosão de tudo, parece um apelo à redenção, já que o que é “fatal” não é o “destino infeliz” mas que a “esperança persista”: “mas nós nunca aceitamos a noite sem remédio / nem a treva por substância do destino: / percorre-nos uma íntima ansiedade / de salvação até ao último momento, // já sem nada a fazer e sem acreditarmos, / já com tudo contado, pesado, dividido, / é fatal que inda a esperança persista no limite / e por isso vivemos e nos comove a vida.”