UM PASSEIO DE LANCHA EMBALADO PELA BRISA DA TRAGÉDIA
Setembro 01, 2024
J.J. Faria Santos
O Presidente dos afectos colocou a fasquia alta para os restantes políticos. A cena da tragédia passou a exigir a sua presença – o pathos como circunstância política. Claro que a sua colorida personalidade, bem como a sua sinuosa prática, me levam sempre a pensar que ele é igualmente afectuoso a consolar um “popular” (como dizem invariavelmente os jornalistas) devastado pela perda de um familiar e a atirar para debaixo do comboio um membro de um governo caído na desgraça da impopularidade.
Já o primeiro-ministro é uma espécie de mito em construção. A ex-heterónima de Belém do jornal Expresso escreveu esta semana que “o rural vai durar”, porque conseguiu “anular ressentimentos de grupos sociais decisivos” e, mais importante, “foca-se no rumo que traçou e dá pouca confiança”. Se Montenegro “dá pouca confiança” a Marcelo, é compreensível, visto que não se deve permitir grande familiaridade a quem não é confiável. É preferível a fria cortesia do formalismo.
Desprovido de carisma, fiel à avareza da palavra, fixado na reconciliação com parcelas do eleitorado que o austero sentido de estado do passismo alienou, o primeiro-ministro procura construir a gravitas a partir de um compósito de propaganda, subsídios, gestão de silêncio e aparições cirúrgicas. É neste contexto que se situa a sua deslocação ao local da queda de um helicóptero no rio Douro.
Se a sua presença seria compreensível, dado o cargo que desempenha, já o mesmo não se pode dizer do passeio de lancha no rio, com o segurança/fotógrafo à ilharga, porque “quis estar pessoalmente com os mergulhadores que estavam a desempenhar uma missão muito perigosa e a colocar a vida em perigo”. É possível que, toldado pela emoção, o primeiro-ministro tenha revivido a sua vocação de nadador-salvador, mas isso não disfarça a inutilidade do gesto e a desconfortável suspeita de que assistimos a um evento mediático susceptível de originar um registo fotográfico lisonjeiro. Além do mais, parece-me evidente que para que a solidariedade com os operacionais no terreno fosse plena, Montenegro deveria ter mergulhado e não embarcado num minicruzeiro. No plano dos gestos simbólicos, um mergulho subaquático de Montenegro no rio Douro arrasaria o lúdico mergulho de Marcelo no Tejo.
Imagem: site do jornal Observador