UM INCÊNDIO NUMA NOITE ESCURA
Julho 15, 2015
J.J. Faria Santos
Entrevistado por Isabel Lucas para a revista dominical do Público, o escritor israelita David Grossman declarou: “A vida é ofensivamente pequena e muitos de nós esforçam-se demasiado em não ser eles mesmos, não ouvindo o que deveriam ser. Muita da nossa realidade é-nos imposta por expectativas de outras pessoas, pelos ditames de outras pessoas e vemos muita gente a viver em paralelo em relação às vidas que deveriam viver.”
Estas reflexões cruzaram-se no meu espírito com uma passagem da Ana Karenina de Tolstoi, mais exactamente o início do capítulo IX da Primeira Parte da obra. Descreve a chegada a casa de Ana e a determinação do marido em fazer-lhe notar a “significação e a importância da opinião pública”, “o sentido religioso do casamento” e as “desgraças” que a poderiam atingir a ela e ao filho se persistisse no relacionamento inconveniente com o conde Wronsky. O escritor descreve desta forma o semblante dela: “o rosto brilhava-lhe, mas não de alegria. Era antes o brilho dum incêndio numa noite escura.”
Para estarmos à altura do desafio de Grossman, para exercermos a liberdade plena de escolher o caminho que nos completa, teremos inapelavelmente de queimar pontes com quem obstaculiza o nosso trajecto e deixar áreas devastadas pelo fogo do nosso esforço para sermos fiéis a nós próprios? Contrariar as expectativas do outro implica, necessariamente, assumir uma ruptura, instalar o desconforto, não escamotear o conflito. Mais tarde ou mais cedo, (sim, corre-se sempre o risco de ser demasiado tarde), o outro perceberá que nenhuma harmonia será virtuosa se assentar na negação da essência de cada um.
(Ana Karenina, de Leão Tolstoi, tradução de Vasco Valdez, Civilização Editora)