TRUMP E OS TRUMPETES
Janeiro 06, 2020
J.J. Faria Santos
Li o título da peça de João Lemos Esteves que esteve em destaque na secção do Sapo Opinião & Blogs (“Trump, o líder dos direitos humanos: hasta la vista, Quasem Soleimani!”) e ocorreu-me se não teria havido uma troca de identidades, tratando-se antes de um texto satírico de Ricardo Araújo Pereira. Mas não. O intrépido Lemos Esteves levou a sua condição de trumpete (admirador fervoroso de Trump a roçar o misticismo ) até ao paroxismo, proclamando urbi et orbi que “O ano novo começou com uma excelente notícia para a liberdade e para a democracia – e para a defesa dos direitos humanos.” Sintomaticamente, omitiu a paz, tão ansiosamente presente nos votos de quem deseja um auspicioso 2020.
Por detrás do título alucinado com uma alusão cinematográfica deve residir uma crença na visão estratégica do actual presidente americano (a quem Pacheco Pereira, escrevendo no Público, diagnostica “uma ignorância abissal, um simplismo grosseiro e uma agressividade sem limites, todos os defeitos de carácter [e] um comportamento errático e caótico”). Doutro modo, Lemos Esteves teria meditado no facto de anteriores inquilinos da Casa Branca, como Bush e Obama, se terem abstido de eliminar Soleimani, ponderando o potencial de desestabilização regional e a escalada de violência, optando, conscientemente, por tomar providências que impedissem o Irão de desenvolver armas nucleares.
Tentar apresentar como uma acção de defesa um acto de guerra (na definição do director do Público, Manuel Carvalho, “um assassínio intencional e selectivo de uma alta figura do Estado”), só é compreensível à luz da prepotência e da irresponsabilidade com que Trump exerce o seu cargo. Claro que para o trumpete Lemos Esteves, o editorial do Público deve explicar-se pelo facto de existirem jornalistas “que odeiam a tradição religiosa judaico-cristã da Europa – quase manifestaram a intenção de ir acender uma velinha em honra à alma do terrorista bárbaro Soleimani.” (?) Robin Wright notou na New Yorker a ironia do iraniano ter sucumbido num tipo de “operação que orquestrou contra os Estados Unidos com frequência ao longo dos anos e com resultados letais”, mas não deixou de sublinhar que o efeito do ataque americano pode vir a ser o inverso do pretendido. Para além de ter constituído um “embaraço para os líderes iraquianos e um desafio à soberania do Iraque”.
O “Presidente Trump é o melhor amigo da LIBERDADE e da democracia”, escreveu Lemos Esteves (sim, ele grafou liberdade com maiúsculas, como o seu ídolo gosta de utilizar a torto e a direito). Será que Trump considera ser seu desígnio promover uma mudança de regime no Irão? Ele negou-o, mais do que uma vez. Porém, como Dexter Filkins explicou, também na New Yorker, “desde que tomou posse, a administração Trump transformou a mudança de regime numa política implícita. Ao retirar-se do acordo nuclear iraniano e ao impor sanções que enfraquecem o país, os conselheiros de Trump apostaram que poderiam derrubar o regime”. Só nos faltava que este cenário se materializasse, mais um exemplo de voluntarismo na promoção da democracia que fatalmente acabaria no caos. Nada que preocupe o trumpete Lemos Esteves, chefe de claque, arrebatado pelo brilho do orador, pelo farol da liberdade, pelo magnata cor-de-laranja. Estranho arauto da liberdade e da democracia este, que se esmera na boçalidade, que destrata os adversários políticos, que desdenha da verdade e que rebola na ignorância. E que do seu púlpito no Twitter prega aos convertidos, trumpetes que como repetidores de wi-fi garantem que o sinal da intolerância e da ignorância se propaga. Cabe a todos nós o esforço de resistência para não permitir a subversão. E reagir. Para já, citando novamente Pacheco Pereira, “a resposta a Trump é débil para o grau da sua perigosidade”.