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NO VAGAR DA PENUMBRA

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TRISTE SINA: JÉSSICA, A FADISTA E A BRUXA MÁ

Junho 25, 2022

J.J. Faria Santos

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A história contém os ingredientes de um conto infantil: a criança amorosa, a bruxa má, a cantora/fadista com ares de cigarra, o padrasto bom ou menos mau. O pai (a formiga?) ausente na Holanda e o marido da bruxa, chamado Justo (a ironia não quis faltar), cúmplice nos alegados crimes de rapto, extorsão e homicídio da pequena Jéssica. O móbil do crime? Uma dívida por “serviços de bruxaria”. Nesta versão negra de um conto de fadas, nada como uma motivação assente numa competência ilusória e intangível.

 

Ocasionalmente, emerge da sua hibernação acolchoada o sobressalto dos indignados. Daqueles indignados arrancados ao mundo VIP das famílias modernas (por oposição às famílias disfuncionais), onde via redes sociais se anunciam ao mundo o amor conjugal e o desvelo paternal. A boa consciência choca-se com a descida ao lúmpen dos sentimentos degradados.

 

O desfecho trágico ascendeu à categoria de facto noticioso. Agentes policiais, psicólogos e juristas enquadram a situação, debatendo-se com a dificuldade da investigação em curso, dos diagnósticos à distância e da especulação antes dos factos provados. Hordas de jornalistas tomam de assalto o plateau, perseguindo a mãe desnaturada, o pai ausente no estrangeiro, o padrasto alvo da “estratégia de amarração” e demais personagens, principais e secundárias. As questões, imperiosas, banais, intrusivas, repetem-se, sem que se perceba a sua pertinência para além da exploração do pathos. Não se recua perante nada. O descontrolo emocional de uma avó é escrutinado até à obscenidade, como se a expiação de uma qualquer culpa colectiva exigisse uma cena operática, onde só a exposição de um sentimento desmesurado pudesse fazer justiça a uma dor incalculável. Há gritos de “assassina”, tumulto, violência e desfalecimentos, tudo em nome de uma menina de 3 anos que jaz desfigurada num caixão branco, aberto à curiosidade humana e à avidez de fotógrafos acidentais.

 

Para quê fotografar? Para partilhar, como escreveu Ana Dias Cordeiro no Público, “a imagem mártir do indizível”? É que, como escreveu Susan Sontag em “Olhando o Sofrimento dos Outros”, “As fotografias atrozes não perdem inevitavelmente a sua capacidade de chocar. Mas não são de grande ajuda quando o que se pretende é compreender. As narrativas podem fazer-nos compreender. As fotografias fazem outra coisa: perseguem-nos.”

 

Imagem: wallpapers.com

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