O CRONOMETRISTA DA NAÇÃO
Maio 19, 2024
J.J. Faria Santos
A última performance artística de André Ventura seguiu o estilo e os maneirismos do realizador-actor: o tom arruaceiro, a arriscar o desarranjo das cordas vocais, os gestos com volumetria, o relancear do olhar pela sua bancada para acirrar as hostes, que se dividiam entre a adoração ao líder e a profusão de apartes onde a boçalidade a e má-criação se conluiavam, e o habitual chorrilho verbal onde se atropelavam os disparates, as mentiras e os acintes. A referência do líder da direita radical à falta de produtividade ou de aplicação do povo turco no trabalho deu azo a um debate paralelo, que acabou com o presidente da Assembleia da República a defender a liberdade de expressão e o direito de Ventura dizer que “determinada raça ou etnia é mais burra ou preguiçosa”.
As opiniões dividiram-se entre os que acharam inadmissível que a liberdade de expressão sirva para o discurso do ódio e da discriminação e os que se congratularam com a defesa intransigente do carácter ilimitado da liberdade de expressão e, inclusivamente, do direito a ofender. A palavra censura foi brandida. Só mais tarde, serenamente, o debate evoluiu para o que deveria ser o ponto fulcral: não está em causa a censura ou impedir o deputado de exprimir as suas ideias; o que merece reflexão é o papel, neste contexto, do PAR e a sua prerrogativa de advertir o orador se o discurso deste se tornar “injurioso ou ofensivo”.
Os juristas parecem concordar que a decisão de advertir um deputado é uma deliberação subjectiva. Ao preferir abster-se de, no mínimo, sublinhar o que consta no artigo 240º do Código Penal (Discriminação e incitamento ao ódio e à violência), Aguiar-Branco escolheu um caminho que arrisca pôr em xeque a dignidade das instituições e ao mesmo tempo limita o exercício das suas próprias funções. A menos, claro, que se resigne ou se reveja no papel de cronometrista da nação.
Mesmo aqueles que, como Sérgio Sousa Pinto, consideram que “faz parte das regras do convívio democrático suportar a estupidez humana e aceitá-la resignadamente" dificilmente escaparão à inquietação de ver uma bancada no Parlamento transformada numa reles tasca, onde o carácter permanente das pateadas, dos urros, dos insultos e do discurso abjecto degrada o debate democrático e agride a solenidade e a credibilidade da instituição. (Que um partido que diz tanto prezar a ordem se esmere na desordem, eis uma razão para a existência de um PAR que preserve a autoridade e não confunda imparcialidade com complacência.) É por isso que entre um PAR “activista” (como Leonor Caldeira caracterizou Augusto Santos Silva) e um outro indulgente com a “estupidez humana” e com o namoro com a ilegalidade e o crime, prefiro o primeiro. A tese de que fazer marcação cerrada a Ventura é promovê-lo e dar-lhe palco não me convence. Ele já invadiu todos os palcos. ”Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar”. Se ele chegar aos corredores do poder, não terá só o poder da retórica. Nessa altura, a advertência não o abalará e a censura não o dissuadirá. E a nossa liberdade de existir em plenitude estará comprometida.
Imagem: parlamento.pt