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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O RADICAL GENIAL ATOLADO NO ESCÂNDALO

Dezembro 12, 2021

J.J. Faria Santos

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Ele tem aquele ar que normalmente se associa à genialidade, singular e irrequieto, neste caso certificada pela frequência do colégio e da universidade das elites. Respondendo aos anseios dos seus eleitores, deu aos britânicos o ansiado Brexit (não hesitando na propagação de flagrantes mentiras), mas aparentemente esgotou a sua energia criativa e os seus grandes desígnios políticos nessa empreitada.

 

Dois anos depois de uma retumbante vitória, escreve Tom McTague na The Atlantic, “o primeiro-ministro mais radical desde Margareth Thatcher apresenta-se assolado pelo escândalo, impopular e à deriva”. Mesmo tendo em conta a dificuldade de gerir uma nação em tempo de pandemia, nem mesmo os seus correligionários se atrevem a considerá-lo um bom primeiro-ministro. Como nota McTague, ele cometeu o pecado capital do bom conservador: “aumentou os impostos para o nível mais alto desde os anos 1950 (quebrando uma promessa de campanha)”.

 

O discurso desconexo, aos repelões e pejado de onomatopeias e sugestões infantis (literalmente) perante centenas de empresários pode ser encarado como uma excentricidade, mas cotejado com outros episódios compõe o retrato de um político impreparado ou, no mínimo, dependente do brilhantismo ocasional da improvisação. Já não escapa, porém, à suspeita da inconsequência. Para quem, por exemplo, se mostrou chocado com a disparidade de riqueza entre Londres e o sudeste e as restantes regiões do país, pouco fez de estrutural para debelar este intervalo. Talvez, como McTague escreve, seja de admitir que a maioria dos governos se limite a fazer “pequenos ajustamentos e a lidar com os desafios à medida que eles se manifestam”, sendo até aceitável que isto seja algo inerente ao conservadorismo.

 

Claro que os think-tanks, os analistas políticos e os líderes de opinião estão sempre à procura dos estadistas visionários, capazes de forçarem as célebres reformas estruturais, desestabilizarem os interesses instalados, perseguirem um desígnio inquestionável e congregarem o apoio popular. Esta conjugação de factores aproxima-se fatalmente da impossibilidade, nada que detenha, todavia, a vontade dos tribunos do ciclo noticioso de 24 horas.

 

Boris Johnson ainda não terá atingido o ponto de não retorno da sua credibilidade, mas há limites para aquilo que um spin doctor consegue fazer perante uma epidemia de disparates. A confirmação de que o cabelo desalinhado é um espelho da desorganização das suas ideias será desastroso, sobretudo se se reflectir numa patente incapacidade de exercer cabalmente o cargo de primeiro-ministro.

 

Imagem: Wikimedia Commons (Prime Minister's Office)

O REGRESSO DA MÚMIA (E A HABILITAÇÃO DE HERDEIROS)

Setembro 27, 2020

J.J. Faria Santos

O_REGRESSO_DA_múmiacavaco.jpg

“Os afectos do professor Marcelo foram úteis para desanuviar do estilo múmia paralítica”, disse Ana Gomes, entrevistada no programa Isto É Gozar com Quem Trabalha. A alusão depreciativa ao anterior chefe de Estado suscitou críticas de quem, como um dos directores-adjuntos do Expresso, considera que “o insulto não é de todo em todo tolerável”.

 

Em 2001, durante o seu discurso numa conferência do Partido Conservador, Margaret Thatcher, aludindo à sua passagem por um cinema no trajecto para Plymouth, aproveitou para fazer uma piada, explicando que ao contrário do que lhe fora dito a sua presença era aguardada porque o cartaz anunciava o regresso da múmia. Na verdade, parece que o seu escasso conhecimento da cultura popular a impediu de perceber que se tratava de um filme de terror, pelo que a mummy que ela achava ser uma referência maternal, era na verdade um cadáver dissecado enfaixado. Salvou-se o sentido de humor, mesmo equivocado.

 

Consta que o professor Cavaco, em privado, terá uma predisposição jocosa que nunca revelou em público, certamente por receio que manchasse a sua hirta solenidade. Presumivelmente, não terá apreciado a tirada de Ana Gomes, cáustica, mas não necessariamente insultuosa. O dicionário online da Porto Editora oferece como sinónimos de múmia em sentido “figurado, pejorativo – pessoa muito magra e de pele ressequida” e também “pessoa sem ânimo ou vitalidade”. Ora, pejorativo, segundo a mesma fonte, é algo com “conotação desfavorável”, “que expressa menosprezo”, o que é diferente de uma ofensa ou de um ultraje.

 

O professor regressou ao ciclo noticioso com a pré-publicação no Expresso do seu novo livro, intitulado Uma Experiência de Social-democracia Moderna, uma manifestação de fé nas virtudes da social-democracia, onde assume Sá Carneiro como grande referência (e também Olof Palme). Talvez porque a “social-democracia não é susceptível de uma formulação única e simples”, Cavaco Silva tanto nota que “quer a social-democracia alemã quer a sueca rapidamente concluíram que a pureza ideológica sucumbia perante as realidades da governação” como frisa que “o exercício do poder, para Sá Carneiro não podia abdicar dos princípios da social-democracia em nome da eficácia”.

 

A publicação de Cavaco Silva surge poucos dias depois de André Ventura se ter apresentado como “o herdeiro humilde” de Sá Carneiro, cujos discursos passa “muitas horas a ler”. Ventura, que de “múmia paralítica” não tem nada, é herdeiro mas pouco. É que, como explicou na convenção do seu partido, “O pensamento de Sá Carneiro era para os anos 1970 e 80, o meu pensamento é para o século XXI”. O frenesim mediático e a propensão para os soundbites acabaram prejudicados por uma convenção caótica, assaltada por lunáticos e propostas aviltantes, onde a cadeira do poder foi conquistada à força da repetição de votações e de lágrimas no canto do olho.

 

Imagem: desciclopedia.org

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