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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

OS SITIADOS

Março 20, 2022

J.J. Faria Santos

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Sentimo-nos sitiados. Primeiro com a pandemia, agora com a guerra, experimentamos uma subversão do nosso modo de vida, um condicionamento de difícil adaptação, sintetizado na fórmula “novo normal”. E embora saibamos o quão ridículo pode parecer o drama de um isolamento profiláctico ou o stress da corrida às bombas de gasolina comparados com um bombardeamento, isso não nos serve de consolo. Já nos preparávamos para resgatar os bons velhos tempos pré-covid quando, subitamente, o espião que veio do frio com apetites imperiais congelou as nossas ambições, inscrevendo de novo na Europa os sinais da guerra.

 

Sempre olhei, com um misto de admiração e perplexidade, para aquele tipo de pessoas que se movem na vida como se ela representasse um direito adquirido à festa perpétua e ao jardim das delícias. Não que as circunstâncias da vida corrente me sejam particularmente penosas ou deprimentes; simplesmente acho que o episódio quotidiano da nossa existência implica esforço e dedicação, da nossa parte, para o tornar aprazível. E mesmo que não nos impressionemos com a frase de Sartre, “o inferno são os outros”, não nos podemos sentir, como escreveu Susan Sontag em “Olhando o Sofrimento dos Outros”, “desiludidos (mesmo incrédulos) quando confrontados com a evidência daquilo que os humanos são capazes de infligir a outros humanos sob a forma de atrocidades horríveis, por suas próprias mãos”, porque isso significaria que ainda não teríamos atingido a “idade adulta moral ou psicológica”.

 

Até agora, para a generalidade dos portugueses e dos europeus, a evocação da paz limitava-se a um ritual de cada passagem de ano, como as passas e o fogo-de-artifício, um desejo genuíno mas contaminado pela leveza do adquirido com sabor a perpetuidade. “A convicção de que a guerra é uma aberração, ainda que não seja possível detê-la, é fulcral nas perspectivas modernas e um sentimento ético”, considerou Sontag. Para logo a seguir nos lembrar que “a guerra tem sido a norma e a paz a excepção”.

 

Agora que a guerra se impôs com toda a sua brutalidade e toda a sua crueldade, quedamo-nos sitiados nas nossas certezas morais e nos nossos juízos inequívocos. Não somos diplomatas escravos da subtileza e do equilíbrio na corda bamba das possibilidades. Não nos peçam que troquemos a indignação inflamada pela ponderação asséptica dos interesses das nações, que vejamos como admissível a negociação com um sádico desprovido de empatia. Porque negociar é ceder. E ceder a um fora-da-lei agressivo e agressor é premiar o inominável.

 

E, no entanto, negociar é preciso. Os interesses das nações não são desejos esotéricos de entidades abstractas. Os interesses das nações são os interesses dos que nela habitam, indisponíveis para viver sob a ameaça iminente de um conflito nuclear. E a guerra, mesmo que justa, é desumana. De alguns grandes agravos, amorosos ou familiares, do foro íntimo ou profissional, diz-se, com frequência, que mesmo que não se esqueçam, devem ser perdoados. Susan Sontag diz que “fazer as pazes é esquecer. Para a reconciliação, é necessário que a memória seja imperfeita e limitada.”

 

A reconciliação não é mais do que “o restabelecimento de relações entre pessoas desavindas”, relações de preferência pacíficas. É quanto basta e é incontornável. Não toleraremos o autocrata e seguramente não o perdoaremos. Simularemos uma “memória imperfeita e limitada” e tentaremos manietar o agressor na teia dos seus próprios interesses, condicionando a sua gula e a sua ambição, ganhando tempo. Até que apareça alguém que não use o engenho humano para desvalorizar o sentimento de humanidade.

 

Imagem: Mstyslav Chernov (war.ukraine.ua)

2020 - ANNUS HORRIBILIS

Dezembro 13, 2020

J.J. Faria Santos

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O que tornou 2020 um ano tão horripilante foi a simples (e ao mesmo tempo insuportável) circunstância de, para evitar a progressão de uma doença, nos termos visto forçados a renunciar aos sinais e aos gestos da nossa humanidade. E termos tido de os substituir por sucedâneos insatisfatórios e até caricaturais (um encontro mediado por um ecrã é escasso, e um presencial toque de cotovelo um frouxo e insólito sinal de afecto por comparação com o enlaçar das mãos ou o toque dos lábios na face).

 

A propósito de um ano medonho, Stephanie Zacharek escreveu um ensaio na Time do qual podemos retirar encorajamento e esperança. Sobretudo quando ela recorda que o Renascimento se desenvolveu sobre os escombros de uma Europa dizimada pela peste negra. “As nossas vidas podem ser duras – neste dia, neste mês, neste ano – mas contemplem o que outros alcançaram em eras de sofrimento”, nota Zacharek, que considera que “a ameaça mais debilitante neste ano foi a sensação de desamparo”.

 

Desamparo e, porventura, impotência. Citando declarações de Barack Obama em entrevista à The Atlantic, editada em Portugal pelo Expresso, noutro contexto, mas que podem ser aplicadas a este, “a questão não é se as coisas podem ficar melhores; é quanta dor temos de sofrer para chegar lá”. Confrontados com um acontecimento que se tornou viral (na mais pura acepção da palavra), resta-nos confiar no progresso científico e adoptar rigorosas regras de convivência que evitem ou minimizem o risco de contágio, no fundo estender ao nosso quotidiano o código de conduta que Obama diz aplicar na sua acção política, a saber: “ancorar o nosso comportamento na ética e na moralidade e na decência humana básica.”

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