SERVIÇO DE URGÊNCIA
Março 22, 2025
J.J. Faria Santos
A paciente (designação mais apropriada do que utente ou doente) ligou para o SNS24 convencida de que o resultado seria a marcação de uma consulta de cuidados primários para o dia seguinte. Volume de chamadas significativo. Espera. Sugestão de triagem digital, que teve como resultado o encaminhamento para confirmação clínica por um profissional de saúde. Perante um quadro de “expectoração difícil de mobilizar” e alguma tosse, a recomendação acabou por ser, provavelmente tendo em conta a idade, as morbilidades crónicas e o princípio da precaução, a ida ao serviço de urgência.
Pouco depois da nove da noite deixei a paciente, autónoma, a pouco mais de um mês de completar oito décadas de vida, à entrada da Urgência e fui estacionar o carro. Reencontrei-a escassos minutos depois na antecâmara da triagem, onde lhe foi atribuída a pulseira amarela (o risco existe, mas não é imediato e o tempo de espera médio é de uma hora).
A sala de espera (mais uma vez, uma designação de uma exactidão inexcedível) é um aglomerado de casos clínicos heterogéneos. O homem magro e calvo com sinais de trombose venosa e que, ao telemóvel, explica a alguém que as análises vão reflectir a quimioterapia que está a fazer; a mulher serena e radicalmente realista que se prepara para esperar horas, e que especula que se for para ser tratada com “ben-u-ron e Voltaren”, prefere ir já para casa; a jovem com excesso de peso, deitada em 3 bancos, agarrada ao soro, com tosse cavernosa (mais tarde, a mulher serena irá colocar o soro no suporte com rodas e alguém chamará um enfermeiro porque não se notava gotejamento); a mulher debilitada que repousa no cadeira de rodas e que treme continuamente, segundo o marido devido à ansiedade; o jovem de casaco de cabedal que parece estar a ter um ataque de soluços ou então a reprimir o vómito.
Pouco depois da meia-noite acompanho a paciente à consulta. O jovem médico de barbas, diligente e compenetrado, confere a medicação que ela toma, inquire sobre sintomas, mede a tensão arterial, despista a possibilidade de febre e ausculta com o estetoscópio os murmúrios do corpo. O diagnóstico inicial parece relativamente benigno. Prescreve análises e um raio-x. A paciente preocupa-se com mais tempo de espera. “Não vai demorar muito”, alvitra o jovem médico, que se mostra agradado com o meu comentário: “É o tempo que for preciso”.
A enfermeira loura, que já entrara e saíra da sala de espera vezes sem conta, vem colher o sangue da paciente que, no final, salienta a necessidade de apertar bem o penso devido ao facto de estar a tomar um anticoagulante. (O resultado das análises demora duas horas.) Pouco depois a mulher ansiosa tremelicante também se deita nas cadeiras. Olho, com inveja, o homem imperturbável que lê um livro. Passei a noite, parafraseando a epígrafe do Ensaio Sobre a Cegueira, a olhar para o canal Hollywood sem verdadeiramente o ver, ou então a ver sem verdadeiramente reparar. Pouco depois a paciente vai fazer o raio-x. É seguir a linha, não há extravio possível. No corredor, que vislumbro pela porta entreaberta, passam cadeiras de rodas, macas, pessoas novas e velhas, erectas ou encurvadas, médicos apressados, enfermeiras atarefadas e doentes em rotação entre as salas de espera, a consulta e a realização de exames. E há a chamada dos doentes. Os nomes repetem-se toda a noite como uma melopeia. Todos os nomes.
Pouco depois da quatro e meia da manhã, por fim, a paciente teve alta. Diagnóstico: “quadro sugestivo de IVAI [infecções das vias aéreas inferiores] de etiologia viral”. Medicada, com indicação para reavaliação pelo médico assistente, foi alertada de que determinada sintomatologia requereria nova ida ao serviço de urgência. A noite foi cansativa, mas o profissionalismo, a humanidade e até a afectividade do corpo clínico foi, em condições difíceis, assinalável. A enfermeira loura tratava as mulheres por “minha querida”, e por “jovens” os homens que eram tudo menos isso.
À saída peço à paciente que aguarde enquanto vou buscar o carro ao parque. Não sinto o frio. Nos hospitais é como nos estúdios de TV: é Verão todo o ano. O conforto adquirido no interior serviu de barreira ao choque térmico externo. De regresso, avanço com a viatura pela zona reservada às ambulâncias em vez da destinada aos restantes veículos. O segurança, que ladeava a paciente, espraia-se em gestos largos, como se eu tivesse cometido uma transgressão imperdoável. Não há ambulâncias à vista, nem outros carros. Somos apenas nós: a paciente, eu e o porteiro da noite. Que até foi meu colega de escola. “Lembras-te de mim?”, pergunta com um sorriso largo. Claro que sim. Às vezes, em noites frias e insones, tudo o que temos é a memória.