ANATOMIA DA GREI VII - SERVIÇO DE URGÊNCIA
Junho 13, 2021
J.J. Faria Santos
“Matem-me antes que eu morra. Morrer dói muito”, berrava o homem por detrás do biombo. Como numa novela radiofónica, um anacronismo na era da imagem, era o som que desenhava a realidade, permitindo à imaginação fazer o retrato-robô do paciente. Estendida numa maca, num reservado contíguo, Lara, a ser tratada a uma taquicardia, ouvia o clamor, entre a compaixão e o divertimento, e imaginava um homem sob a influência do álcool ou da exasperação. Um homem talvez sexagenário ou septuagenário, embrutecido pela doença ou pela vida. Estranho a delicadezas e renitente às práticas da civilidade.
Quando lhe ofereceram chá ou leite, declinou requerendo vinho. À sugestão de um lanche com bolachas, declarou a sua preferência por carne. A dada altura, a irritação subiu um ou dois patamares, soltando expressões em calão, o que motivou uma intervenção verbal mais assertiva de um enfermeiro, exigindo respeito e que não perturbasse os outros doentes do serviço de urgência. Mais tarde, declarará que pretendia “ir embora” (já não era relevante “matarem-no antes que morresse”?). Teria como resposta que poderia fazê-lo, desde que “assinasse direitinho” o termo de responsabilidade. Mas, claro, é difícil manter um rumo perante um percurso sinuoso. A identidade é um arabesco, um gatafunho. E Lara, sem conhecer o desfecho do episódio clínico do vizinho do biombo do lado, ficou a meditar que a vida às vezes dói tanto que até parece que estamos a morrer. Isto enquanto por via intravenosa, uma mensagem sob a forma medicamentosa explicava ao seu coração acelerado a vantagem da maratona sobre as provas de velocidade.
Imagem: Wikimedia Commons