CONFINADAMENTE DESALENTADO
Novembro 15, 2020
J.J. Faria Santos
Confrontado com a omnipresença mediática de figuras sem nenhum talento especial ou arte que as enobreçam, com a trivialidade e a encenação bacoca que alastram pelas redes sociais e com a relevância noticiosa atribuída a um partido unipessoal, cujo representante máximo se celebrizou por invocar a toda a hora um sentimento que manifestamente lhe falta, as palavras de Bernardo Soares (in Livro do Desassossego) parecem-me mais actuais que nunca: “Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação”.
Há algo de sinistro na expressão “seguidores”, que faz lembrar os stalkers (e a sua fixação patológica nos seus objectos de desejo); é preferível a designação fãs ou admiradores. Idealmente, seria de esperar que os admiradores procurassem notícias acerca da obra e dos projectos dos seus ídolos, porém, nesta época de simulação de proximidade e de encenação da vida privada e da vida íntima, o que desperta a atenção são publicações do género: “fulano revela que está apaixonado”, “sicrano surpreende mulher com viagem de sonho”, “it girl sensual exibe rabo incrivelmente tonificado” ou “modelo seminu mostra as suas tatuagens”. É a vida em directo, as temporadas sucessivas da série da vida irreal, o dia de cada um de nós no star system das nossas existências.
Enfadonho, seguramente, mas talvez não particularmente grave, se não nos distrair do essencial. Que é manter a decência e a humanidade em tempos de covid, desalento e já algum desespero, circunstâncias em que um verdadeiro artista (de que não sou seguidor, nem perseguidor, apesar da retórica abjecta que necessita ser combatida) se exibe em toda a sua miséria. O líder do Chega, que Francisco Assis definiu como um “charlatão” que elevou a “patamares quase demenciais” a “tarefa de afirmar tudo e o seu contrário”, concedeu uma entrevista à Lusa onde criticou Salazar porque “atrasou-nos muitíssimo em várias aspectos”. Antes, porém, foram retirados de uma estante no gabinete onde concedeu a entrevista vários livros acerca do ditador. Encenação, palavra volátil. O gesto é tudo para este artista português com um guião inspirado no populismo universal.
IMAGEM: "Family Walking Day" de Alena Shymcnenok (courtesy of Bert Christensen)