AINDA NÃO CHEGÁMOS À AMÉRICA
Outubro 18, 2020
J.J. Faria Santos
“O regime está podre – e Marcelo é cúmplice”, bradou João Miguel Tavares. Um dia antes, no Observador, já José Manuel Fernandes se antecipara, proclamando que “Marcelo é cúmplice de Costa”. Este jornal digital é, aliás, uma fonte inesgotável de opiniões que nos querem escancarar os olhos para o apocalipse que aí vem. “O país caminha, passo a passo, para um buraco”, escreve Sebastião Bogalho. Já Alberto Gonçalves, não só actualiza a demonização - “o dr. Costa foi o pior que podia ter acontecido a Portugal” – (em tempos este ceptro pertencia ao eng. Sócrates…) como faz questão de alardear, retrospectivamente, a sua condição de profeta: “Há exactamente cinco anos (…) previ, porque era fácil prever, que o dr. Costa arrastaria o país para uma ditadura”. Infelizmente, são artigos premium, pelo que se quisermos abarcar a totalidade do pensamento do colunista teremos de despender algum capital, o que se me afigura pouco estimulante em relação a um órgão de comunicação caracterizado por uma unicidade de pensamento que torna a leitura monótona.
A receita é a do costume: juntam-se um conjunto de factos que aparentemente traduzem uma tendência, faz-se com eles um amálgama que aparente degenerescência, adiciona-se uma retórica apelativa ou incendiária e está pronto a degustar (desgostar) o prato da indignação do dia. Que importa que não seja suportada pelos factos a noção de que os fundos europeus foram pasto para fraudes em grande escala? Que importa que a percepção de um elevado grau de corrupção não seja depois comprovada com dados reais e objectivos? O que parece relevante são os “factos alternativos” e, sobretudo, as teorias da conspiração.
O grande argumento, implícito ou explícito, é o de que o sistema de freios e contrapesos não funciona em Portugal. A grande ironia é que nos EUA, a terra do checks and balances, o Presidente usa a Casa Branca para comícios de reeleição, recorre a organismos do Estado para perseguir adversários políticos, manipula o ministro da Justiça a seu bel-prazer, não hesita em utilizar as forças de segurança em acções de pura propaganda, nomeia juízes para o Supremo numa base puramente ideológica, mente compulsivamente e aparenta ter uma atracção inexplicável por tiranos e inimigos do Estado americano. Já em Portugal, temos “um filme de terror” (João Miguel Tavares). Costa e Marcelo afastaram Joana Marques Vidal! Costa e Marcelo afastaram o presidente do Tribunal de Contas (que o próprio primeiro-ministro nomeara)! O PS, argumenta Tavares, quer controlar tudo, e o “apodrecimento do regime democrático português” tem a cumplicidade de Marcelo. A troco de quê? Do apoio à recandidatura?
Certa direita parece acreditar que só sairá de crise se se aproximar do argumentário do Chega, e se acenar a cada instante com o espectro do socratismo. E desespera com o tacticismo presidencial, empenhado em tornar evidente o génio com que tenta conciliar o sentido de Estado e o papel congregador e unificador da sua magistratura, o desejo íntimo de criar condições para a alternância de regime que favoreça a sua família política, e ainda as exigências de uma reeleição com um score significativamente superior ao da primeira eleição. Certa direita, até aquela que tem relutância em rotular de fascista ou ditatorial o regime de Salazar, vê agora a ditadura em cada esquina. Não é porque António Costa decidiu, a propósito de uma app, sugerir uma fórmula legislativa disparatada, inaplicável e prepotente que se transformou num ditador em potência. Ainda não chegámos à América, onde o (perigoso) delírio chega ao ponto de um elevado número de apoiantes de Trump acreditarem que membros do Partido Democrata, actores de Hollywood, o Papa Francisco e Angela Merkel (que seria neta de Hitler…), entre outros, fazem parte de uma rede pedófila. E vampiresca, dado que também bebem o sangue das vítimas.
Foto: Clara Azevedo (Expresso.pt / Gabinete PM)