PRESIDENTES E PRESIDENCIÁVEIS
Janeiro 10, 2021
J.J. Faria Santos
O Presidente da lei e da ordem liderou o incitamento ao assalto à democracia americana. Parecia querer tornar literal a afirmação proferida no discurso de inauguração do seu mandato: “O dia 20 de janeiro de 2017 será recordado como o dia em que as pessoas se tornaram novamente nos governantes desta nação”. E o seu povo, alimentado a desencanto, mentiras e ilusões, galgou as escadarias do poder para continuar a “drenar o pântano” e execrar as elites, sem se preocupar com o facto de a sua acção de desrespeito do Estado de direito transformar a América num simulacro de um qualquer “shithole country”. A surpreendente facilidade com que o Capitólio foi invadido, e a não tão espantosa benevolência com que alguns polícias trataram os desordeiros (selfies incluídas), dão a exacta medida do prejuízo incalculável que a administração Trump causou ao país. Já não há forma de ajudar este Presidente a terminar o mandato com dignidade. A dignidade que ele, atolado no narcisismo, na ignorância e na sociopatia, nunca teve.
O consenso mediático parece estar estabelecido. Marcelo reina com o seu ar beatífico e ecuménico, servindo sorrisos condescendentes aos adversários e atirando ao povo pérolas pedagógicas, ao mesmo tempo que justifica as decisões tomadas durante o seu mandato com a força da lógica pura, sem sombra de ideologia ou subjectividade. Marisa Matias, dizem, está mais apagada e João Ferreira mostra-se bem preparado, mas está refém da cartilha. E se Ana Gomes se apresenta acutilante, mas contida, em modo diplomático (e presidenciável), já André Ventura não desilude no seu registo incisivo-arruaceiro de mestre dos decibéis que sabe enfeitar qualquer debate com apartes acintosos. Ele não quer discutir argumentos, ele almeja demolir o adversário. Parece que a grande revelação é Tiago Mayan Gonçalves, o portador do facho do liberalismo. Verdade seja dita, o candidato da Iniciativa Liberal não hesitou em demarcar-se de políticas que discriminam minorias, estigmatizam emigrantes e promovem o divisionismo. É sempre de assinalar quando alguém reafirma que é inaceitável trocar o inominável por um punhado de votos.
O grupo parlamentar do PPE solicitou a intervenção de Ursula von der Leyen no caso da nomeação do magistrado José Guerra para a Procuradoria Europeia. Na carta, o PPE considera que este assunto “mina a integridade da Procuradoria Europeia” e que Portugal, ao fornecer “informações falsas”, está a “ameaçar o Estado de direito”. O objectivo do grupo parlamentar é a abertura de um “inquérito imediato”. Tirando algumas trapalhadas processuais e políticas, é difícil perceber uma centelha de governamentalização num processo em que os candidatos foram seleccionados e ordenados pelo Conselho Superior do Ministério Público (composto por uma vasta maioria de magistrados), tendo o júri europeu feito uma reordenação da classificação, não rejeitando qualquer nome. O primeiro-ministro e Presidente do Conselho da União Europeia em exercício, António Costa, acusou Paulo Rangel (vice-presidente do grupo parlamentar do PPE), Miguel Poiares Maduro e Ricardo Batista Leite de liderarem uma “campanha internacional contra Portugal”. Independentemente do mérito ou da razoabilidade das alegações, e do seu grau de virulência, não é legítimo fazer equivaler uma crítica política a um crime de lesa-pátria. De igual modo, pior que aventar uma “ameaça ao Estado de direito” só mesmo a ideia bizarra do PSD de apresentar uma queixa-crime contra o primeiro-ministro. Tão bizarra que os três ofendidos trataram de a descartar.
Imagem: Wikimedia Commons