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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

OS ULTRAS

Julho 24, 2022

J.J. Faria Santos

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“Encaramos a sexualidade a partir da perspectiva da procriação. O objectivo do sexo não é o prazer. Nosso Senhor não nos dotou sexuados para a gente andar aí a fornicar com rapazes e raparigas. O meu problema não é a orientação sexual, é o uso da sexualidade. Se um filho meu me disser que é homossexual, significa que não lhe consegui transmitir a verdade.” Eis uma súmula da entrevista concedida por Artur Mesquita Guimarães ao jornal I. O retrato que emerge é o de um conservadorismo radical que promove o anátema do prazer, com uma visão da sexualidade em que a simples alusão ao tema tem a capacidade de desencadear o desregramento. Não é inocente o recurso à palavra “fornicar”, que tem ressonâncias bíblicas. Apesar de afirmar não ter qualquer problema com a “orientação sexual”, acaba por sugerir que um filho homossexual seria a prova da sua incapacidade para lhe “transmitir a verdade”. A verdade dele, claro, a verdade do supranumerário da Opus Dei.

 

É difícil escapar à tentação da caricatura, dado que as declarações de Mesquita Guimarães se aproximam tanto das diatribes do Diácono Remédios. Até nas tentativas canhestras de fazer humor, visíveis na entrevista ao I, quer seja acerca da orientação sexual (“Se fosse a uma loja de periquitos, pedisse um casal, esperasse uns ovinhos e depois entendesse que eram dois do género masculino ou feminino... Não eram um casal.”), quer seja sobre o papel do Estado na educação das crianças (“Imagine se, daqui a uns anos, em vez de dizermos que x menino sai ao pai e à mãe, acabássemos por dizer que sai ao Ministério da Educação ou ao Agrupamento de Escolas Camilo Castelo Branco?”)

 

Como sempre suspeitei, para os pais de Famalicão o problema das aulas de Cidadania circunscrevia-se à temática da sexualidade. Daí também a alusão em entrevista à SIC a manuais orientadores que são “criminosos”, certamente por poderem desviar os filhos “de viver a virtude da pureza, da castidade”. Aqui e ali, porventura consciente de estar a projectar uma imagem bafienta e tacanha, o entrevistado alude à sua alegada abertura de espírito. Um pouco como aquelas pessoas que para provarem que não são racistas invocam a sua amizade com cidadãos negros, Mesquita Guimarães esclarece que tem amigos homossexuais (que são “maravilhosos”) e que têm essa orientação sexual por “questões de fabrico”.

 

Na entrevista à SIC, Artur e Ana Paula sentaram-se lado a lado, mas a dona de casa, detentora de graus académicos, optou por se limitar a escassas palavras de concordância perante o fluxo discursivo do marido. Pode ter sido por modéstia, por absoluta sintonia de ideias ou por preferência pelo protagonismo mediático do marido. O certo é que se sublinhou (por anuência tácita) a unidade familiar no assunto em causa, não deixou de projectar uma certa imagem de subalternidade, como se os seus motivos fossem supérfluos face à (trágica) eloquência das posições do chefe de família.

PROUST - AFORISMOS

Agosto 30, 2020

J.J. Faria Santos

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Do preço da leviandade - “É sempre e só por causa de um estado de espírito sem futuro duradouro que tomamos resoluções definitivas.” (Volume 2, página 157)

 

Da maleabilidade do tempo - “O tempo de que dispomos em cada dia é elástico; as paixões que sentimos dilatam-no, as que inspiramos encolhem-no, e o hábito enche-o.” (Volume 2, página 191)

 

Do prazer como revelação - “Há prazeres como fotografias. O que se tem na presença do ser amado não passa de um negativo, revelamo-lo mais tarde, chegados a casa, quando reencontramos à nossa disposição aquela câmara escura interior cuja estrada está ‘interdita’ enquanto há gente à vista.” (Volume 2, página 456)

 

Do outro como abrigo - “(…) há momentos em que precisamos de sair de nós mesmos, de aceitar a hospitalidade da alma dos outros (…)” (Volume 3, página 144)

 

Do desejo enganador - “Nada há como um desejo para impedir as coisas que se dizem de ter qualquer semelhança com o que temos no pensamento.” (Volume 3, página 358)

 

Do snobismo como enfermidade - “O snobismo é uma doença grave da alma, mas localizada, e que não a deteriora totalmente.” (Volume 5, página 10)

 

Do amor tirano - “Muitas vezes o ciúme não passa de uma inquieta necessidade de tirania aplicada às coisas do amor.” (Volume 5, página 85)

 

Do medo como acicate do amor - “A maioria das vezes o amor só tem por objecto um corpo se uma emoção, o medo de o perder, a incerteza de o recuperar nele estiverem fundidos.” (Volume 5, página 86)

 

Do amor como funambulismo - “(,,,) por muito tranquilos que nos julguemos quando amamos, sempre temos no nosso coração o amor em equilíbrio instável.” (Volume 5, página 217)

 

Da fé derradeira - “Quando nos vemos à beira do abismo e parece que Deus nos abandonou, já não hesitamos em esperar dele um milagre.” (Volume 6, página 21)

 

Da virtude da mentira - “A mentira é essencial à humanidade. Nela desempenha porventura um papel tão importante como a procura do prazer, e de resto é comandada por essa mesma procura. Mentimos para proteger o nosso prazer, ou a nossa honra se a divulgação do prazer for contrária à honra.” (Volume 6, página 199)

 

Estas citações, apresentadas sob a forma de aforismos, foram retiradas da obra-prima de Marcel Proust (1871-1922) Em busca do Tempo Perdido, editada pelo Círculo de Leitores, com tradução de Pedro Tamen. Os setes volumes foram, entre Setembro de 2003 e Julho de 2005 (à medida que foram editados e por mim adquiridos) os protagonistas dos meus hábitos de leitura desse período. Como habitualmente, sublinhei determinados excertos, os quais serviram de base para a selecção transcrita nesta publicação. O leitor que sou revê-se no leitor que fui, mas não pode deixar de reconhecer e sublinhar que estas escolhas são um produto de um tempo e de uma circunstância. Uma (re)leitura da obra em 2020 produziria, seguramente, alterações no elenco de citações, num eterno e mutável efeito de apropriação. O próprio Proust, aliás, escreveu no sétimo volume (O Tempo Reencontrado – página 223) que “…cada leitor é, quando lê, leitor de si próprio. A obra do escritor não passa de uma espécie de instrumento óptico que ele oferece ao leitor a fim de lhe permitir discernir aquilo que, se não fosse aquele livro, ele porventura nunca veria dentro de si mesmo.”

 

Imagem: Marcel Proust fotografado por Otto Wegener circa 1895 (Wikimedia Commons)

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