A MISSIVA DO PROFESSOR DOUTOR ANDRÉ VENTURA
Janeiro 05, 2025
J.J. Faria Santos
Ainda os portugueses se debatiam com a ressaca do réveillon quando o Presidente da República, Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, informou a nação de que, “na sequência da missiva remetida pelo Conselheiro de Estado Professor Doutor André Ventura”, solicitara que “a mesma fosse enviada aos demais Conselheiros de Estado para transmitirem o que tiverem por conveniente”.
Eu tenho a secreta esperança de que por trás da circunspecção e do sentido de Estado, a generalidade dos “demais Conselheiros” teriam uma quase irreprimível vontade de proferirem inconveniências perante um André Ventura que, com a elegância habitual, aludiu a eles como “um conjunto de pessoas com mais de não sei quantos anos a dizer o que lhes passa pela cabeça que não interessa a ninguém e a não acrescentar nada à vida do país”.
Convém esclarecer que o Professor Doutor André Ventura e o André Ventura não são exactamente a mesma pessoa. O primeiro escreve “missivas” onde “sugere” a realização de um Conselho de Estado que se debruce sobre “um estado de insegurança brutal” e demonstra interesse em revitalizar este órgão de consulta do Presidente. E é autor de uma tese de doutoramento onde deplorava “a estigmatização de comunidades” (“associadas, de modo superficial, ao fenómeno terrorista”), e via em determinadas acções policiais a expressão de “preconceitos sobre raça, nacionalidade ou religião”. Já o segundo especializou-se em dizer precisamente o que lhe “passa pela cabeça”, sem preocupação de rigor, veracidade ou adequação, e explora os instintos e os medos mais primários dos cidadãos, não hesitando na utilização de linguagem ou gestos miméticos de regimes radicais ou extremistas. E, evidentemente, só pode rejeitar a associação intensiva das suas credenciais académicas, susceptíveis de o colarem a um elitismo que o afasta do típico “português de bem”.
Do mesmo modo, o Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa e o Marcelo são entidades distintas. Um é um prestigiado académico, constitucionalista de alto coturno, voluntário de causas nobres e analista política de inteligência fulgurante. O outro, o Marcelo, é um afamado criador de factos políticos (uma espécie de “percepções”), um vigoroso entertainer que, como todos, tem o supremo objectivo de ser amado, um arrojado traçador de perfis psicossociológicos e um pecador relapso que se desdobra em actos de contrição com a certeza íntima da absolvição.
Há pelo menos uma coisa que estes dois sósias dos Dr. Jekyll e Mr. Hyde têm em comum: ambos já foram fotografados a rezar numa igreja. Mas se André Ventura “sente e sabe” que a sua “missão política está profundamente ligada a Fátima”, e considera este o seu “grande Segredo” (sim, em maiúsculas), Marcelo chegou a deslocar-se a Fátima “de 15 em 15 dias para rezar”, segundo um reputado semanário “atormentado pelo gozo e pela culpa”. Que Deus lhes perdoe. E se tardar a manifestação de misericórdia do Todo-Poderoso, podem sempre escrever-lhe uma “missiva”.