O “caso” político, ao contrário do “escândalo”, comporta “um lado obscuro, críptico, que é preciso decifrar”, defende António Guerreiro na sua coluna no Ípsilon. De tal forma assim é, prossegue Guerreiro, que a “decifração” se transformou no “exercício preferido” do jornalismo, que “teve de abandonar, em larga medida, outras tarefas de que estava incumbido na sua idade clássica”. Nesta circunstância, se não é difícil responder às perguntas o quê, quem, quando, onde e como, já o porquê parece ficar envolto numa capa de especulação e dissimulação. E se o jornalismo funciona, citando Daniel Ricardo, como “um espelho da realidade [e] não pode acolher histórias inventadas nem relatos inquinados pela falta de fidelidade aos factos”, a acção detectivesca sobre “factos políticos” (uma subcategoria demasiado devedora da interpretação e da opinião), onde parece ser mais importante confirmar um pré-juízo de culpabilidade ou falsidade do que apurar a verdade dos factos, conduz à subversão da prática jornalística. O que ainda é mais grave se notarmos, como Guerreiro sublinhou, que muitos decifradores, analistas, comentadores são, eles mesmos, actores políticos ou ex-actores políticos trabalhando para o comeback ou empenhados na salvaguarda do seu capital de influência.
Os decifradores defendem a gravitas, mas pelam-se pela dessacralização do poder; apreciam os ritos, compreendem a importância da sobriedade e da discrição, mas advogam o absolutismo da transparência. Toda a acção política é pública, todo o escrutínio depende da agenda totalitária, toda a omissão é a prova de uma ambição inconfessável. Todo este cenário, já por si complexo, é agravado por uma circunstância específica: a residência no Palácio de Belém do criador dos factos políticos, fonte de jornais e televisões, uma sorridente e melíflua central de desinformação, ex-decifrador profissional sempre disposto a aparecer como explicador benévolo. Veja-se o caso da escala de Costa na Hungria. Marcelo não viu “problema político específico”, uma formulação (propositadamente?) arrevesada, mas apressou-se a levantar hipóteses de explicação que não lhe competiam dar, desde a necessidade de fazer a escala até à vontade de “dar um abraço” a Mourinho. O resultado foi um debate acalorado e com a extracção de ilações absurdas, que incluíram a acusação de falta de transparência pelo facto de o encontro não constar da agenda até ao uso indevido de bens do Estado.
Num artigo que escreveu para o Público há cerca de um mês, Pacheco Pereira considerava que “as regras do jornalismo desapareceram do espaço público, substituídas por um tratamento comicieiro e politicamente motivado e orientado, que, por falta de alternativa, deixa todos entregues à intoxicação”. Se não há dúvidas de que a “democracia morre na escuridão”, talvez fosse oportuno meditar se não a estaremos a cegar com o brilho dos holofotes do populismo, das notícias falsas e das teorias da conspiração, sob o pretexto da transparência e do escrutínio.
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