O PIANISTA
Junho 30, 2024
J.J. Faria Santos
Janelas estilhaçadas com vista para a natureza. Destroços no chão de um compartimento, onde a claridade se imiscui para desenhar sombras. No meio do retrato do caos, um militar das Forças Armadas ucranianas toca piano. Variações sobre a guerra. Só podemos imaginar se ele, num intervalo das trevas do combate, escolheu um nocturno melancólico para sublinhar o torpor de um soldado cansado da desumanidade, ou se, tomado por uma ânsia de oblívio, se lançou num scherzo vivaz, deslizando os dedos pelas teclas com a alegria tensa de quem tacteia a pele de um interesse amoroso. Tudo é precário neste cenário, tudo apela à incongruência, tudo parece desmentir a inesperada irrupção da beleza num palco de destruição.
E o piano estará afinado? As cordas sob tensão terão resistido às flutuações de temperatura, à humidade, à utilização mais ou menos intensiva e a esse fenomenal teste de stress que é um conflito bélico? Se escutar nos fosse permitido, obteríamos nitidez sonora e um timbre apurado? Neste interlúdio na cidade de Chasiv Yar, equipado com capacete e, porventura, colete à prova de bala, um homem de armas sentado ao piano desafia os deuses do Apocalipse. Que alguém no meio da barbárie, abstraindo-se do caos e da destruição, procure resgatar a voz de um piano ferido na sua imponência e no seu brilho, eis um sinal de que os ventos de guerra não dobram os espíritos indomáveis.
Imagem: Jornal Público