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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O MEDO

Fevereiro 14, 2021

J.J. Faria Santos

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“Quem dorme à noite comigo? (…) / O medo mora comigo, / Mas só o medo, mas só o medo!” O poema de Reinaldo Ferreira, que Amália soberbamente interpretou, adquire especial ressonância nos tempos que correm. Se na generalidade da população se vai conciliando o legítimo receio com a audácia possível de um cauteloso viver quotidiano, nota-se na paisagem mediática (políticos, líderes de opinião e figuras públicas em geral) um desassossego acrescido, uma sensação de impotência, a descrença agressiva de quem luta pela preservação. Seria de esperar, talvez, um pouco mais de sangue-frio, de análise racional, de noção das nossa fragilidades e inconsistências enquanto nação e enquanto povo, da complexa teia de interesses e necessidades que condicionam a nível europeu e mundial a luta contra a pandemia e a disponibilização de vacinas. Mas, lá está, somos humanos. E por detrás de proclamações desassombradas e implacavelmente furibundas espreita o medo. O medo que nos protege, mas que também nos tolhe e, um pouco paradoxalmente, nos desumaniza.   

 

Amanda Gorman, poeta americana, celebrizada pela sua participação na tomada de posse de Joe Biden, em conversa com Michelle Obama para a revista Time, defendeu que o “optimismo não deve ser encarado em oposição ao pessimismo, mas antes em diálogo com ele. (…) A maneira como nos podemos manter esperançosos não consiste em negar os sentimentos de medo ou de dúvida, mas sim perguntar: O que nos conduziu a esta escuridão? E o que nos pode conduzir para longe destas trevas?” Esqueçamos as patetices new age do “vamos ficar todos bem”, mas não nos deixemos cair na tentação do édito do descalabro, do diagnóstico a transbordar de uma pretensa feroz lucidez que anuncia que os factos prenunciam a loucura e o desastre sem remissão. Numa altura em que tantos se empenham em pregar a moderação contra toda a espécie de radicalismo (excepto o do próprio…), seria avisado não ceder ao medo, nem permitir que o descontentamento com as opções, erros e omissões de quem está à frente do país se confundam com uma inquietação a roçar o nihilismo.

 

Imagem: Amanda Gorman fotografada por Awol Erizku para a Time (pormenor)

O EPIDEMIOLOGISTA HONORIS CAUSA PELA UNIVERSIDADE TVI

Fevereiro 07, 2021

J.J. Faria Santos

Portas_Global.jpg

Inicialmente, a rubrica Global parecia destinada aos grandes temas da política internacional. Paulo Portas prescindia de mergulhar na mesquinhez das tricas internas, mantendo-se convenientemente afastado das convulsões da sua família política, ao mesmo tempo que compunha uma aura suprapartidária com verniz presidencial. As subtilezas da diplomacia e a riqueza da geoestratégia alimentavam o seu lendário sentido de Estado e a sua irrevogável pose hirta e solene. Mas eis que desabou sobre o mundo uma pandemia e o global pareceu demasiado amplo para os seus cirúrgicos objectivos a nível nacional. Foi quando Portas se transformou numa espécie de explicador do fenómeno pandémico luso, armado de dados, quadros, gráficos, curvas e opiniões definitivas sublinhadas por uma cara fechada, um dedinho em riste e o ocasional sorriso no canto dos lábios quando dá uma ferroada no desempenho governamental. O analista de política internacional evoluiu para uma espécie de epidemiologista honoris causa pela Universidade TVI.

 

Como sublinhou Constança Cunha e Sá (que conhece bem quer a TVI quer Portas, e é insuspeita de deriva esquerdista) no Twitter: “Quando é que a TVI percebe que o Paulo Portas não é médico, nem infecciologista e não tem preparação para ter um comentário semanal sobre vírus e vacinas. Uma coisa é todos nós termos umas coisinhas a dizer sobre a coisa, outra é esta fantochada semanal.” Na passada semana, o ilustre comentador fez num aparte “uma reflexão melancólica de quem saiu da política há 5 anos”. Imaginem que nas actuais circunstâncias, propôs ele, Portugal vivia sob “a égide de um Governo de centro-direita”. O que não se diria, as demissões que não se teriam pedido, os insultos que não se teriam proferido. E terminou, em jeito de desabafo, afirmando que “as pessoas também têm que ganhar um bocadinho de equidade nestas coisas.” O cerne da questão está precisamente na questão da “equidade”. Portas pode proclamar que saiu da política (o que me parece altamente duvidoso), mas a verdade é que a política jamais “sairá” dele. É uma segunda pele, um reflexo condicionado. Mesmo enquanto director de jornal, a sua objectividade foi sacrificada a uma agenda política.

 

O exercício de análise crítica da actividade governativa é não só altamente recomendável como essencial para a saúde da democracia. Mas também me parece indispensável que não se pretenda transformar uma rubrica de opinião num oráculo ideologicamente puro, aludindo a uma duvidosa abstinência de cinco anos. Sobretudo vindo de quem é apontado como futuro candidato presidencial. Vamos ter um remake para o centro-direita (protagonizado por um cinéfilo), com Portas a caprichar nos afectos? De resto, ele não deve ter razões de queixa em relação ao que se tem dito sobre o actual Governo. Pedidos de demissões? Check. Insultos? Check. E ainda, como bónus, líderes de opinião à beira de um ataque de nervos, clamando por governos de iniciativa presidencial e passando certidões de óbito ao Governo de Costa. Não há falta de massa crítica, os opinion makers estão atentos e de língua afiada. O epidemiologista honoris causa pode dedicar-se à nobre arte da política. Sem dissimulação.

 

Imagem: Tviplayer.iol.pt

UM GOVERNO DE INICIATIVA PRESIDENCIAL?!

Janeiro 31, 2021

J.J. Faria Santos

LUSA.jpg

O salvador da pátria não nasceu em Belém, mas reside em Belém. E o seu profeta, Miguel Sousa Tavares, sugere que ele reflicta seriamente na possibilidade de patrocinar um governo de iniciativa presidencial. Se isto lhe traz um aroma a instabilidade e PREC, não se preocupe. Sousa Tavares não quer um PREC, quer um PRIC (Processo de Remoção Iminente do Costa). E porquê? Explica ele, em artigo no Expresso, que o primeiro-ministro “governou o país durante a primeira fase da pandemia com lucidez e capacidade de liderança”, mas desde Setembro vem acumulando “sinais de cansaço (…) de desnorte e, ultimamente, até de descrença.” Teremos, portanto, uma brusca alteração de perfil psicológico do PM, de “optimista irritante” para “descrente fatigado”, vítima da fadiga pandémica. Portanto, ao afirmar que “não está tudo bem, está tudo péssimo”, Costa não está a ser lúcido ou rigoroso, estará a sucumbir ao desânimo.

 

Em termos gerais, o colunista do Expresso propõe que um iluminado-mor (o Presidente) forme um governo de iluminados, escolhidos pela sua “competência e determinação para enfrentar a crise”. Não é necessário, clarifica ele, nem dissolver o Parlamento nem “despedir todo o elenco do actual Governo”. Marcelo, com a legitimidade política reforçada por uma reeleição em sufrágio universal com mais de dois milhões e meio de votos, disporia da discricionariedade de compor um elenco governativo com a missão de guiar Portugal durante o período de emergência, tomando como indiscutível que este comité de sumidades geriria o país com infalíveis presciência e competência.

 

Era inevitável. Mais tarde ou mais cedo, alguém sugeriria a Marcelo que usasse o seu capital político reforçado numa iniciativa política em estilo bulldozer. Foi cedíssimo. O que não era previsível era que o apelo, em vez de vir de uma direita destroçada em reconfiguração, proviesse de uma massa inorgânica de defensores da moderação centrista (ou será do centrismo extremista?), sempre pronta a ver radicalismo em cada esquina. Para Sousa Tavares, por exemplo, Ana Gomes é de “extrema-esquerda” e António Costa “governa com e para a esquerda do PS, mais o BE, o PCP e o PAN – e contra a vontade de uma larga maioria dos portugueses”. O Presidente deveria patrocinar, assim, o afastamento de um Governo liderado por um partido que apresenta 39,9% de intenções de voto na última sondagem da Aximage, cujo trabalho decorreu entre 9 e 15 de Janeiro, em plena preparação do confinamento, treze pontos percentuais acima do PSD. Numa outra sondagem, realizada pelo CESOP, em que o PS recolheu 39% das intenções de voto e o PSD 28%, 87% dos inquiridos consideraram provável que o Governo cumprisse o mandato até ao fim, embora 61% se mostrassem favoráveis a uma remodelação no elenco ministerial. Um governo de iniciativa presidencial parece-me ser uma interpretação, digamos, demasiado radical do conceito de remodelação…

 

Jorge Miranda, insigne constitucionalista, afirmou em tempos que “um governo de iniciativa presidencial é, por natureza, um governo muito precário”. A ideia de que num momento crítico da pandemia, com mais de dois milhões de mortos em todo o mundo (12 482 em Portugal, mais de cinco mil só no presente mês), com o país envolvido na presidência do Conselho da União Europeia, Marcelo promoveria a instabilidade e a precariedade políticas é da ordem do insano. Pior do que isto. Tal iniciativa significava, também, passar um atestado de incompetência à Assembleia da República, nomeadamente quanto à sua função de controlo e fiscalização dos actos do Governo e da Administração. Seria, ainda, como se o próprio Presidente confirmasse a sua impotência para usar o seu poder de influência (o tal que ele gosta de usar generosamente, no limite da ingerência, em nome do interesse nacional, do seu próprio interesse ou da sua intuição). Seria, por fim, retirar ao povo a possibilidade de, mediante o exercício do direito de sufrágio, julgar a acção governativa de Costa e dos seus ministros. Afinal, é esta a base do funcionamento da democracia.

 

O opinion maker, apetece-me especular, não estará também cansado e descrente? É que estamos todos. Felizmente, não lhe deu para escrever que estaria em causa o “regular funcionamento das instituições democráticas”. É que, tendo em conta as afirmações proferidas por Marcelo (“Mais complicado do que ser Presidente é ser governo nesta pandemia. Por isso é que eu, correndo o risco de, sobretudo à direita, ser acusado de dar uma cobertura excessiva, eu não tive a mínima dúvida em dar cobertura total.”), ficaríamos a braços com um Presidente conivente com a “desregulação”.

 

Imagem: António Cotrim/Lusa

FALTA DE VISOM

Novembro 29, 2020

J.J. Faria Santos

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A Dinamarca deu ordem para abater 17 milhões de visons. A primeira-ministra prestou declarações de voz embargada e lágrimas nos olhos, e pediu perdão. Ainda que a decisão, apesar de ter sido tomada com uma base legal aparentemente inexistente, tenha uma motivação perfeitamente racional: uma mutação do vírus SARS-CoV-2 encontrada em visons foi também encontrada em cerca de 200 pessoas, pondo em risco a eficácia que uma vacina poderá vir a proporcionar. A primeira-ministra acabara de visitar uma quinta de criadores de visons, os quais revelaram as emoções despertadas por esta razia. Embora para alguém distante destas actividades possa escapar a subtileza da diferença entre mandar abater animais por razões sanitárias ou para esfolá-los para a produção de bens que confortam e embelezam a nossa pele.

 

António Guerreiro escreveu no Público (Ípsilon) que este episódio “faz da Dinamarca uma espécie de Treblinka dos animais”, acrescentando que “com toda a seriedade e sem qualquer ironia, o humanismo é isto: pôr todas as espécies, vivas ou esfoladas, ao serviço do homem.” Como acontece com muitas das medidas que pretendem controlar a pandemia, o impacto económico é significativo: as 1139 quintas de criadores existentes no país empregam cerca de seis milhares de trabalhadores, representando 40% da produção global de pele de visom. A emoção também está aqui, na perda de rendimentos, no golpe sofrido por um modo de vida, mesmo que transitório.

 

Num desenvolvimento inesperado, mas cientificamente explicável, alguns visons, enterrados empilhados a uma altura de dois metros, emergiram das valas comuns. As suas carcaças, quais zombies assintomáticos, graças à libertação de gases proporcionada pelo processo de decomposição, fizeram a sua aparição, como se quisessem evocar uma espécie de monumento ao visom desconhecido, caído na retaguarda da batalha contra a pandemia. À falta de visom na quinta do criador contrapõe-se um cenário em que ele se reergue no cemitério das decisões dilacerantes.

 

Imagem: lifestyle.sapo.pt

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