CHEGA DE FUTURO
Maio 25, 2025
J.J. Faria Santos
“Se, antigamente, o jogo político consistia em afinar uma mensagem que unia, hoje em dia trata-se de desunir da maneira mais deslumbrante possível. Para se conquistar uma maioria, já não é preciso convergir para o centro, mas adicionar os extremos.” Pode esta citação de Giuliano da Empoli (“Os Engenheiros do Caos” – edição da Gradiva) sintetizar a estratégia eleitoral de Luís Montenegro? O que é certo é que a cedência da AD àquilo que Cas Mudde apelida de hibridização, visível na forma como a coligação explorou a questão da imigração (com direito a anúncio de deportações), se lhe trouxe ganhos, também reforçou a normalização do discurso do Chega. Sendo assim, a adição dos extremos acabou por ser limitada. E se contribuiu para um reforço da votação na AD e para a devastação do principal partido de esquerda, teve o dano colateral de reforçar a ameaça a curto prazo representada pelo partido de Ventura. Seja resultante de alterações sociais motivadas por mudanças estruturais na economia, seja motivada pela alteração de valores associados a mudanças culturais, teve como consequência a consciência por parte da classe política de que “a mobilização de preferências da direita radical é uma estratégia eleitoralmente viável”. (Vicente Valentim – O Fim da Vergonha – edição da Gradiva)
Cordão sanitário ou negociação à la carte, eis as opções ao dispor do primeiro-ministro, que recorre sistematicamente a um estilo de comunicação avarento e propositadamente ambíguo, ao mesmo tempo que vai alegando clareza e acusando de má-fé os interlocutores, porque só não percebe quem não quer perceber ou é estulto. Não só algum PSD como também as restantes direitas parecem querer sucumbir à estratégia de recorrer ao Chega como tropa de choque para materializar em termos práticos a hegemonia adquirida nas eleições. A ideia é esta: se a exclusão/contenção não resultou, porque não experimentar a incorporação?
A tese dominante é a de que o Chega é um íman para os “ressentidos” que “perderam a vergonha”. O ressentimento é o estado de espírito (um rancor resultante de uma situação de inferioridade percepcionada como injusta) que legitimou a aposta no radicalismo, ancorado no nacionalismo e na defesa dos valores tradicionais. Claro que há magnanimidade, desde que enquadrada pelos termos definidos pelo Chega. Veja-se o elogio de Pedro Frazão ao médico imigrante europeu, que “fala português”, e que “salvou a vida de André Ventura”, quando este se debatia de forma heróica com a “queimação interna” que lavrava nas suas entranhas.
Será demasiado tarde para acreditar na transformação do ressentimento em re-sentimento? Este prefixo abre todo um campo de novas possibilidades. É usado para exprimir a ideia de “repetição, intensidade”, mas também de “reciprocidade e movimento para trás”. Os Da Weasel, que cantaram o ”re-tratamento”, podiam dar uma ajuda. Também é possível que o povo, essa entidade abstracta constituída por milhões de indivíduos, a quem os comentadores políticos atribuem uma capacidade mediúnica de convergir de maneira a formar uma vontade colectiva imediatamente discernível, esteja ele próprio mais sintonizado com estas palavras de Antonin Artaud: “Nada me espera para pedir contas, mas eu tenho contas a pedir a alguns ignóbeis velhos labregos da doutrina, contas a pedir por retardarem a vida com os seus sentimentos, paixões, instituições”. (Antonin Artaud – “Os Sentimentos Atrasam” – Hiena Editora)
As recentes eleições não decretaram apenas a consolidação da alternância. Clãs inteiros, todos os grupos sociais, os homens até aos 55 anos e uma parcela significativa dos jovens professaram a sua fé em André Ventura. E é a fé que os vai salvar. O ressentimento desvaloriza a consistência das ideias, ou a viabilidade da sua concretização, e valoriza a performance. Mais do que um líder político, Ventura é para muitos uma espécie de líder espiritual, cujo discurso se parece inspirar no Deus do Antigo Testamento. O Chega de Ventura é um chega de futuro, apenas, ou também um Chega de futuro?