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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

ANATOMIA DA GREI VII - SERVIÇO DE URGÊNCIA

Junho 13, 2021

J.J. Faria Santos

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“Matem-me antes que eu morra. Morrer dói muito”, berrava o homem por detrás do biombo. Como numa novela radiofónica, um anacronismo na era da imagem, era o som que desenhava a realidade, permitindo à imaginação fazer o retrato-robô do paciente. Estendida numa maca, num reservado contíguo, Lara, a ser tratada a uma taquicardia, ouvia o clamor, entre a compaixão e o divertimento, e imaginava um homem sob a influência do álcool ou da exasperação. Um homem talvez sexagenário ou septuagenário, embrutecido pela doença ou pela vida. Estranho a delicadezas e renitente às práticas da civilidade.

 

Quando lhe ofereceram chá ou leite, declinou requerendo vinho. À sugestão de um lanche com bolachas, declarou a sua preferência por carne. A dada altura, a irritação subiu um ou dois patamares, soltando expressões em calão, o que motivou uma intervenção verbal mais assertiva de um enfermeiro, exigindo respeito e que não perturbasse os outros doentes do serviço de urgência. Mais tarde, declarará que pretendia “ir embora” (já não era relevante “matarem-no antes que morresse”?). Teria como resposta que poderia fazê-lo, desde que “assinasse direitinho” o termo de responsabilidade. Mas, claro, é difícil manter um rumo perante um percurso sinuoso. A identidade é um arabesco, um gatafunho. E Lara, sem conhecer o desfecho do episódio clínico do vizinho do biombo do lado, ficou a meditar que a vida às vezes dói tanto que até parece que estamos a morrer. Isto enquanto por via intravenosa, uma mensagem sob a forma medicamentosa explicava ao seu coração acelerado a vantagem da maratona sobre as provas de velocidade.

 

Imagem: Wikimedia Commons

O CERCO E A ESPERANÇA

Janeiro 24, 2021

J.J. Faria Santos

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Cercados pelo espectro da morte por todos os lados, confinados, sujeitos a uma vida em modo de intervalo interminável, queremos resistir e inventar um novo quotidiano. Em nome do bloqueio do vírus e da sanidade mental. Mas a persistência dos desfechos funestos em números alarmantes ameaça erodir as muralhas da nossa fortaleza emocional. Não é sequer indispensável que sejam familiares e amigos a constar da lista de óbitos. O nosso pesar abarca os habitantes da nossa paisagem emocional, os pontos de referência da nossa vivência diária: os desconhecidos com quem nos cruzávamos, os vizinhos, os familiares dos vizinhos, os parentes dos nossos colegas de trabalho, os familiares das figuras públicas da TV, a escritora que lamentavelmente nunca lemos, o jornalista discreto e competente. Sabíamos que a #vamostodosficarbem não passava de uma hashtag piedosa e irrealista, mas não adivinhámos o descalabro que o Natal traria sob a forma de presente malsão para 2021.

 

Agora temos um número impensável de famílias enlutadas, estruturas hospitalares à beira do colapso, profissionais em sofrimento ético, dirigentes tentando harmonizar o planeamento com o improviso, epidemiologistas e matemáticos denunciando insuficiências, erros e atrasos e profetizando a escalada do horror. E o medo regressou, embora nunca tivesse estado verdadeiramente ausente. Esteve camuflado pela alegria dos reencontros e pela presença simbólica da vacina. Agora que o temor regressou com uma intensidade sensata, e que se desvaneceu uma certa inconsciência que raiou o criminoso, é necessário também falar de esperança. Porque ninguém suporta as narrativas da vida real, carregadas de metáforas bélicas, sem a expectativa de um desenlace mais ou menos favorável. Não se trata de escamotear a realidade, ou de a falsear, trata-se de não esquecer que graças aos profissionais da saúde mais de 450 000 portugueses já recuperaram da covid-19. Não, não vamos ficar todos bem. Sim, a morte espreita, mas a vida resiste e não desiste.

 

Imagem: Estela Silva/Lusa (lifestyle.sapo.pt)

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