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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

JORNALISMO TRÂNSFUGA

Outubro 29, 2023

J.J. Faria Santos

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Como num quadro de revista manhoso, dois jornalistas-actores, investidos um no papel de comentador e o outro no de pivô, discorreram num tom chocarreiro acerca do facto de uma mulher transgénero ter vencido o concurso de Miss Portugal. Como o tema anterior fora a crise no Médio Oriente, a ideia deve ter sido a de que o concurso de beleza funcionaria como comic relief. O resultado foi que o conceito de beleza foi despido de toda a subjectividade e a vencedora posta em causa, claramente por causa da sua alegada feminilidade imperfeita. Miguel Sousa Tavares poderia ter-se limitado a tecer considerações acerca da natureza dos concursos de misses (do meu ponto de vista um “evento” obsoleto, que a pretexto de piedosos desejos de paz no mundo promove a objectificação da mulher e a ditadura de padrões de beleza), mas escolheu achincalhar a vencedora num diálogo de uma boçalidade atroz com José Alberto Carvalho, que se apressou a confirmar que jamais se casaria com “esta mulher”. Não sem antes, por entre um riso alarve, ter pedido: “não me comprometas”.

 

Miguel Sousa Tavares criticou as feministas por não se insurgirem contra um concurso que, para além de explorar o corpo da mulher, na sua opinião se transformou “numa anedota e numa batota”. Poderia ter escolhido censurar o regulamento do concurso ou o critério do júri, mas optou por desqualificar Marina Machete pela sua condição de pessoa trans, num tom que parecia asseverar que ela jamais teria passado na pré-selecção para o seu harém pessoal. Interpelado por José Alberto Carvalho se não temia ser acusado de transfobia, Sousa Tavares desvalorizou e recorreu ao chavão do velho senhor que teria dito “só espero morrer sem ser obrigado a certas coisas”, sublinhado com sorrisos de cumplicidade máscula. Recorreu aqui ao velho sofisma que insinua que quem defende os direitos das pessoas tem uma agenda oculta ou inconfessável, que neste caso significaria uma transgressão do código da masculinidade pura.

 

Não vejo qualidades nos concursos de beleza, não aprecio todas as intervenções dos activistas trans, tenho sérias objecções ao conceito de transfake e não conheço pessoalmente nenhuma pessoa transgénero. Acredito, porém, na protecção das minorias, nos direitos humanos e, sobretudo, na defesa intransigente do direito à diferença. Não consigo sequer imaginar o sofrimento causado por uma disforia de género. Depois de consolidada uma identidade, é possível que uma pessoa trans enfrente com determinação e resistência psicológica a expressão boçal em horário nobre do preconceito e da insensibilidade. Como também não alinho em “cancelamentos”, continuarei a ouvir e a ler a opinião de Sousa Tavares, na esperança de que as identidades das pessoas não tornem a ser um rodapé colorido num comentário sombrio sobre o estado do mundo.

A HISTÓRIA NÃO ACABA ASSIM

Abril 17, 2022

J.J. Faria Santos

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Se nos idos de Março se assinalou o momento em que o período de tempo em democracia, em Portugal, ultrapassou os 17499 dias de ditadura, eis que, no cruel mês de Abril, um reputado jornalista, comentador e romancista, com acesso privilegiado aos meios de comunicação social, decretou que “estamos a viver num clima de intimidação concertada sobre o pensamento”, algo que ele nunca experimentara “em trinta anos de escrita em jornais”.

 

Volta e meia, jornalistas com créditos firmados e/ou cargos de direcção, habituados a zurzir com total liberdade e contundência as figuras públicas sob o seu escrutínio, alargam-se em lamentos ou denúncias quando estas exercem o seu direito de resposta, sobretudo se este for feito de forma assertiva e ríspida. Recordo, por exemplo, a reacção de João Vieira Pereira ao SMS em que António Costa criticava com violência a sua prática jornalística. Se é o poder e o seu exercício que tem de ser monitorizado, a bem da saúde da democracia, não se justifica que qualquer reacção mais epidérmica dos visados dê azo a uma invocação de condicionamento ou de atentado ao acto de informar. Da mesma forma, quando a sociedade civil reprova acerbamente as tomadas de posição de jornalistas e comentadores, tal não significa que esteja em curso uma estratégia de silenciamento.

 

No caso presente, Miguel Sousa Tavares queixa-se de que quem não pensar “segundo a cartilha pronta a pensar fornecida pela NATO e pelos países-guia do mundo ocidental é imediatamente catalogado como amigo de Putin e cúmplice moral das atrocidades russas na Ucrânia”. O colunista do Expresso, para “acabar de vez com este sufoco”, acaba por recorrer a um mote que espalha pelo seu último artigo: “A invasão e a guerra que a Rússia levou à Ucrânia não tem justificação. Os massacres e os assassínios deliberados de civis não têm perdão.”

 

“Intimidação concertada sobre o pensamento” será o debate virulento acerca da guerra da Ucrânia, com a grande clivagem entre os que condenam sem contemplações a invasão e os que a censurando se esmeram na contextualização e na tese da” humilhação” ocidental à orgulhosa Rússia? Então agora o debate intimida? Não esclarece nem clarifica? Não se permite vivacidade, confronto de ideias, interpelações mais acesas?

 

Claro que Sousa Tavares poderá estar a referir-se também ao ambiente tóxico das redes sociais, onde se confunde com frequência debate franco e incisivo com má-criação e insulto gratuito, mas isto é algo que ele já tratará como um dado adquirido. Seguramente não lhe faltará arcaboiço mental e intelectual para lidar com posts e tweets corrosivos. Ou sentir-se-á vítima do bullying da maioria?

 

A necessidade de contextualização, a análise das circunstâncias, a ponderação dos interesses e a necessidade de verificação dos factos são passos fundamentais no caminho para a verdade. Mas há momentos em que a bruta manifestação da realidade dispensa a nuance. Uma invasão é uma invasão é uma invasão. E se, como Sousa Tavares diz, “a coragem está na paz, não nos falsos heroísmos”, o preço da cessação das hostilidades não pode ser a subjugação perante o agressor suspeito de crimes de guerra.

 

Confrontada com o continuado envio de material militar por parte dos Estados Unidos para a Ucrânia, a Embaixada da Rússia em Washington emitiu uma nota diplomática onde acusava os americanos de estarem a “atirar combustível” para o conflito e de contribuírem para que “o derramamento de sangue continue”. Não duvido que o colunista do Expresso apreenda a colossal hipocrisia contida nesta posição com laivos de pacifismo. A supressão ao apoio americano significaria um “derramamento de sangue” unilateral.

 

“Intimidação concertada” foi a estratégia russa que conduziu à invasão da Ucrânia (que Miguel Sousa Tavares nunca acreditou que Putin desencadeasse) e à deflagração da guerra. Nada que se confunda com as vicissitudes do exercício da liberdade de expressão numa democracia em paz.

 

Imagem: expresso.pt

OS SOUSAS - OS PRINCÍPIOS, A IDEOLOGIA E A REALPOLITIK

Março 13, 2022

J.J. Faria Santos

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Zelensky, escreveu no Expresso Miguel Sousa Tavares (MST), devia ter negociado com Putin. “Porque não o fez para evitar a invasão do seu país e não ter de assistir a tantos mortos, tanta destruição, tantas famílias em fuga?”, acrescentou. Mas, pergunto eu, MST acha que a intenção de Putin foi sempre a de invadir a Ucrânia? É que o líder russo, quando confrontado com notícias de uma invasão iminente, qualificou-as sempre de histeria e propaganda ocidental, e que a movimentação de tropas era exercício de rotina. Que credibilidade pode merecer a palavra negocial de quem mente tão descaradamente? “A coragem está na paz”, escreve MST. A que preço? Deve uma nação independente claudicar perante os caprichos do seu vizinho todo-poderoso, prescindir de parte do seu território, limitar as suas opções de cooperação internacional, porque se vê confrontado com a ameaça da força militar bruta e com os métodos sem escrúpulos de um autocrata? Então agora troca-se a soberania e a liberdade de acção e pensamento pela “coragem da paz” diante do imperialista Vladimir (a ironia de um adjectivo aplicado a Putin numa altura em que até o PCP alude à “Rússia capitalista” )? Citando Nuno Severiano Teixeira (Público): “com ditadores e autocratas, o ‘apaziguamento’ não vale a pena. Pode adiar, mas nunca evita a guerra.”

 

Às vezes, a busca da nuance perdida, a necessidade de conferir uma suposta sofisticação à análise e a ambição de conferir validade a todos os pontos de vista, em vez de resultar num suplemento de lucidez, limita-se a reproduzir um quadro mental assente em pressupostos ideológicos imutáveis. Do artigo de Boaventura Sousa Santos (BSS) no Público (Para uma autocrítica da Europa), é possível retirar as seguintes conclusões: que “esta guerra estava a ser preparada há muito tempo tanto pela Rússia como pelos EUA”, que a Rússia foi “provocada a expandir-se" pelo alargamento da NATO e que o propósito dos americanos é “manter o mundo em guerra e criar maior dependência dos fornecimentos norte-americanos, sobretudo de armas”. Portanto, para BSS, a culpa pela eclosão da guerra é dos americanos (que a desejaram) e dos líderes europeus, incapazes de manter a paz. A teoria geral da culpa ocidental entronca, claro, na “humilhação” que se teria seguido ao desmembramento da URSS. É difícil aceitar a tese da humilhação, tendo em conta o esforço do Ocidente para a integração da Rússia no concerto das nações. Se países do mesmo sistema político decidiram abandonar a órbita russa, a culpa será menos da atracção pelo Sol ocidental e mais da fuga da escuridão soviética. E a “humilhação” foi tanta que o líder russo, na tentativa de resgatar a grandeza (Make Russia Great Again), foi sucessivamente ocupando ou anexando parcelas do antigo império perante a complacência dos senhores da guerra americanos e das pombas europeias. A culpa da guerra da Ucrânia, para BSS, não é do agressor. É dos EUA e da Europa, da NATO e das “lideranças medíocres” europeias. É como se, para a paz no mundo, a democracia ocidental fosse uma ameaça infinitamente superior à da “nostalgia imperial” do wannabe Czar.

 

Imagem: BSS (visao.sapo.pt) / MST (mag.sapo.pt)

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