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NO VAGAR DA PENUMBRA

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A HISTÓRIA ALTERNATIVA DE JOSÉ GOMES FERREIRA

Junho 05, 2021

J.J. Faria Santos

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Quem melhor que José Gomes Ferreira, naquele seu estilo desassombrado a escorrer auto-suficiência, para nos apresentar os factos alternativos da História de Portugal? Uma enorme paixão pela matéria, “as modernas tecnologias de comunicação e a facilidade de acesso às fontes directas” permitiram-lhe escrever a obra “Factos Escondidos da História de Portugal” (“durante dois anos e meio, nos tempos livres”), com a qual pretende desafiar o meio académico, onde, reflecte em entrevista ao Expresso, “há muita inércia”. Embora admita que “a maior parte dos historiadores trabalha muito, bem e com honestidade (…) mudar a História dá muito trabalho, exige muita investigação, muito esforço para sustentar a argumentação”. E depois, conclui ele triunfantemente, “os historiadores oficiais inibem-se de escrever outras versões da História porque receiam ser ostracizados pelos seus pares”.

 

E se o leitor se interroga como se conjuga a ideia do trabalho árduo do historiador com o diletantismo de uma obra concebida nos tempos livres, o que dizer da sustentação da argumentação? Seguindo um conselho de Rui Tavares no Público, assisti ao episódio do podcast Falando de História, dos historiadores Roger Lee Jesus e Paulo M. Dias, que se dedicaram a esmiuçar “as teorias rocambolescas”, os “erros factuais”, as teses “sem sustentação documental”, “a compilação de pseudo-factos secretos” presentes no volume de Gomes Ferreira, que, em suma, se resumirá a “uma mixórdia de ideias feitas sem sentido”, revelando “uma ignorância enciclopédica sobre o que se produziu e produz academicamente em Portugal”.

 

Com o pretexto de contestar o que ele chama de verdade histórica oficial (como se estivesse em causa uma disciplina monolítica, sem lugar ao confronto de teses), o que Gomes Ferreira acaba por fazer, impulsionado pela sua paixão pelo politicamente incorrecto e embebido em perceptíveis convicções ideológicas, é pretender fazer equivaler teorias de conspiração, conjecturas mal-amanhadas e factos alternativos a sustentadas teses académicas. À boa maneira das redes sociais, cujo funcionamento tende a reforçar ideias e conceitos preexistentes, na concepção do seu livro (que muito deve a pesquisas na Internet…) Gomes Ferreira, citando os autores do podcast, fez “uma escolha muito selectiva da bibliografia” e procurou “adaptar as fontes à [sua]teoria”. Para quê pôr em causa a sua presciência e o seu talento natural para a denúncia, procurando abarcar documentos que pudessem instalar a dúvida, obrigando-o a aproximar-se da amestrada “História oficial”?

 

A culpa é da política, dos governos e do Estado. Porque “quem manda na História são os agentes do Estado nomeados pelos governos” e, por conseguinte, factos relevantes são omitidos por conveniência política ou diplomática. Eis a grande revelação. E os domesticados historiadores, presume-se, sacrificariam o seu trabalho e prescindiriam de ver reconhecido o mérito da descoberta ou da inovação em nome de uma lealdade norte-coreana ao poder do dia, ao mesmo tempo que garantiam prebendas estatais. Deve depreender-se daqui que os historiadores vivem condicionados por uma tenebrosa teia censória? Nem por isso… Como explica o autor ao Expresso: “Em Portugal, só é silenciado quem quer, isto é, quem não quer ter o trabalho de procurar argumentos para fundamentar opiniões diferentes. Neste caso, das duas uma: ou a pessoa diz o que é politicamente correcto e o mesmo que todos os outros dizem, ou se cala, por comodismo. Há muita autocensura em Portugal e há pouca ou nenhuma censura.”

 

Ao contrário do Portugal contemporâneo, que ele parece ver como uma choldra, produto da “esquerda irresponsável, da direita dos interesses e do grande centrão da indiferença”, Gomes Ferreira tem uma visão grandiosa e laudatória do passado da nação portuguesa, um activo que ele pretende reavaliar. Daí esta publicação, que afinal, confessa ele, “não é um livro de História. Este é um livro de política, ou melhor, um livro com a minha interpretação política sobre a maneira como nos é contada a História de Portugal e sobre o que tem de ser mudado.” Está explicado. Não é um livro de História, nem sobre “factos escondidos” que afinal estão a céu aberto na amálgama do ciberespaço ou em bibliografia “seleccionada”. No fundo é uma espécie híbrida, que vai sofrendo mutações, quiçá um gambozino, que terá continuidade. Como um investidor que doseia a audácia com o cálculo, o autor tem em carteira mais factos escondidos para explicar num segundo volume. E, quem sabe, mais tarde se dedique, “nos tempos livres”, à astronomia, para encetar uma corajosa denúncia das mistificações da NASA. Quem em dois anos e meio, nos tempos livres, é capaz de credibilizar teses históricas que reputados historiadores em dezenas de anos de aturado estudo levianamente descartaram, é seguramente homem para revolucionar o conhecimento do cosmos. Vai-se a ver e Marte tem uma tonalidade magenta. Ou lápis-lazúli.

 

Imagem: magg.sapo.pt

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