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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

A MISSIVA DO PROFESSOR DOUTOR ANDRÉ VENTURA

Janeiro 05, 2025

J.J. Faria Santos

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Ainda os portugueses se debatiam com a ressaca do réveillon quando o Presidente da República, Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, informou a nação de que, “na sequência da missiva remetida pelo Conselheiro de Estado Professor Doutor André Ventura”, solicitara que “a mesma fosse enviada aos demais Conselheiros de Estado para transmitirem o que tiverem por conveniente”.

 

Eu tenho a secreta esperança de que por trás da circunspecção e do sentido de Estado, a generalidade dos “demais Conselheiros” teriam uma quase irreprimível vontade de proferirem inconveniências perante um André Ventura que, com a elegância habitual, aludiu a eles como “um conjunto de pessoas com mais de não sei quantos anos a dizer o que lhes passa pela cabeça que não interessa a ninguém e a não acrescentar nada à vida do país”.

 

Convém esclarecer que o Professor Doutor André Ventura e o André Ventura não são exactamente a mesma pessoa. O primeiro escreve “missivas” onde “sugere” a realização de um Conselho de Estado que se debruce sobre “um estado de insegurança brutal” e demonstra interesse em revitalizar este órgão de consulta do Presidente. E é autor de uma tese de doutoramento onde deplorava “a estigmatização de comunidades” (“associadas, de modo superficial, ao fenómeno terrorista”), e via em determinadas acções policiais a expressão de “preconceitos sobre raça, nacionalidade ou religião”. Já o segundo especializou-se em dizer precisamente o que lhe “passa pela cabeça”, sem preocupação de rigor, veracidade ou adequação, e explora os instintos e os medos mais primários dos cidadãos, não hesitando na utilização de linguagem ou gestos miméticos de regimes radicais ou extremistas. E, evidentemente, só pode rejeitar a associação intensiva das suas credenciais académicas, susceptíveis de o colarem a um elitismo que o afasta do típico “português de bem”.

 

Do mesmo modo, o Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa e o Marcelo são entidades distintas. Um é um prestigiado académico, constitucionalista de alto coturno, voluntário de causas nobres e analista política de inteligência fulgurante. O outro, o Marcelo, é um afamado criador de factos políticos (uma espécie de “percepções”), um vigoroso entertainer que, como todos, tem o supremo objectivo de ser amado, um arrojado traçador de perfis psicossociológicos e um pecador relapso que se desdobra em actos de contrição com a certeza íntima da absolvição.

 

Há pelo menos uma coisa que estes dois sósias dos Dr. Jekyll e Mr. Hyde têm em comum: ambos já foram fotografados a rezar numa igreja. Mas se André Ventura “sente e sabe” que a sua “missão política está profundamente ligada a Fátima”, e considera este o seu “grande Segredo” (sim, em maiúsculas), Marcelo chegou a deslocar-se a Fátima “de 15 em 15 dias para rezar”, segundo um reputado semanário “atormentado pelo gozo e pela culpa”. Que Deus lhes perdoe. E se tardar a manifestação de misericórdia do Todo-Poderoso, podem sempre escrever-lhe uma “missiva”.

ANDRÉ, O BEM-AVENTURADO

Setembro 28, 2024

J.J. Faria Santos

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Pedro Nuno Santos quer empurrar Luís Montenegro para os braços de André Ventura, dizem uns. André Ventura está mortinho por acolher nos seus braços Luís Montenegro, acrescentam outros. O que ninguém ou poucos dizem é que Montenegro, colocado entre a espada e a parede, não hesitará em derrubar a divisória e criar um open space de convívio com os portugueses de bem. Confrontado com a proposta “radical e inflexível” do PS, nada como negociar com o radical flexível Ventura, notável seguidor dos princípios de Groucho Marx, propagandista de fake news e malabarista de propostas. Radical por radical, antes o de direita, alumnus de Passos Coelho e cruzado da portugalidade. Confrontado com as linhas rosa, o primeiro-ministro fará implodir as linhas vermelhas. Além do mais, o “não é não” aplicava-se a um “acordo político de governação”, não à viabilização de um orçamento. E o Chega, que nos dias mais lúcidos aspira à respeitabilidade, tem aqui uma boa oportunidade.

 

Pode ter sido coincidência a declaração do PM prometendo mão pesada aos responsáveis pelos fogos, anunciando que o Governo não iria “regatear nenhum esforço na acção repressiva”, bem como a alusão recorrente a “interesses particulares” na origem das ignições. Ou o anúncio esta semana da criação da unidade de controlo de fronteiras e fiscalização de imigrantes. Se recordarmos que Montenegro considerou o combate à corrupção uma prioridade desde a “primeira hora”, temos aqui campo de entendimento. A que acresce o facto de o Chega ser favorável à descida do IRC, matéria que o chefe do executivo considera estratégica para a sua política económica. Em Maio de 2023, inspirado por um encontro com o ilusionista Luís de Matos, Montenegro declarou que era importante fazer “desaparecer o socialismo de Portugal”. Para manter agora o socialismo à distância, se for preciso acomodam-se os caprichos do demagogo populista.

 

Não sendo de descartar a hipótese de o líder do PSD se sentir tentado a forçar eleições, aproveitando, como alguém disse, o frontloading de benesses, não é certo que, mesmo recorrendo à vitimização, os resultados fossem suficientemente apelativos. Por outro lado, o rural Montenegro (que já beneficiou da opção presidencial de recorrer a eleições na sequência da demissão de António Costa), evitando novo sufrágio, ganharia capital político perante o urbano Marcelo. Quem sabe se, mais tarde, este não retribuiria a atenção, congeminando um momento mais propício para o seu PSD ir a eleições, arranjando um leque de justificações criativas cuja especialidade decerto já patenteou. Se é certo que não são propriamente best buddies, a cooperação institucional aproxima-se tanto do conluio que até o circunspecto Expresso sugere que “se entende ser assim tão importante evitar uma crise, Marcelo mais do que convocar conselhos de Estado, tudo deve tentar para levar Montenegro a negociar de forma decisiva e séria com o líder da oposição”. Luís, André e Marcelo podem constituir a troika decisiva para a aprovação do orçamento.

O DISSOLVENTE

Setembro 22, 2024

J.J. Faria Santos

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Esta semana uma mudança tectónica ocorreu no complexo mediático-comunicacional de Belém: a troca de um jornal de referência por um tablóide na função de órgão de comunicação oficioso. O procedimento foi o usual: uma “fonte de Belém” jorrou ao Correio da Manhã que o Presidente convocará eleições se o Orçamento do Estado para 2025 for chumbado. É certo que a revelação, aparentemente, não proveio do próprio, mas se, digamos, um secretário de Estado é responsável pelas acções da sua secretária, o mesmo se aplica a esta situação, presumindo-se que um funcionário da Presidência não ande a divulgar informação sensível à revelia do supremo magistrado da nação. Acresce que, tendo em conta o “cadastro” de Marcelo na matéria, não é de afastar que tenha sido o próprio a promover a cacha, tornando-se irresistível rememorar as palavras que o mesmo pronunciou em Novembro de 2026: “a única fonte de Belém sou eu, é o Presidente”.

 

Marcelo estará preocupado com o efeito que a inexistência de orçamento aprovado terá no rating da República e nos pagamentos do PRR. Se a ameaça de convocar eleições é mais um recurso de alta pressão do que uma profissão de fé nas virtudes da “devolução da palavra ao povo” é o que resta para ver. O político que afirmou, na altura da demissão de Pedro Nuno Santos enquanto ministro da Infra-Estruturas, que “não podemos ter eleições todos os anos” e que o “experimentalismo não é a coisa melhor para a saúde das democracias” (citando uma conjuntura marcada por uma guerra, uma crise económica e financeira e um governo eleito há menos de um ano), é o mesmo que não muito tempo depois proclamava alegremente que “sem dramatizações, nem temores [era] preciso dar a palavra ao povo” para que do sufrágio resultasse um Governo que garantisse “estabilidade”. A única “estabilidade” discernível, tirando o facto de o orçamento ser o mesmo, é que passámos de um executivo com maioria absoluta no Parlamento para um outro que governa como se a tivesse.

 

Como impenitente homem de fé, Marcelo acreditava, há cerca de duas semanas, que iria “haver uma boa vontade grande para poupar o país a experiências de crise política”. Não sabemos se agora estará a passar por uma crise de fé, se deplora a arrogância delirante do primeiro-ministro pouco propícia à negociação ou se sente o apelo irresistível da dissolução. (Veremos que consistência terão as palavras do ministro dos Assuntos Parlamentares, invocando disponibilidade e interesse em “conversar, em negociar e em ceder onde for preciso ceder” para que o OE seja aprovado.)

 

Numa manobra enquadrável no estilo glutão de cobrir todos os ângulos (não confundir com a síndrome de cata-vento diagnosticada pelo Dr. Passos Coelho), a fonte de Belém teve mais uma aparição inesperada, desta vez no Observador (o enclave da direita radical versão elitista) para garantir que o Presidente acreditava na viabilização do Orçamento do Estado, mas não afastava a hipótese de eleições antecipadas.

 

Em Abril deste ano, Marcelo explicou que a dissolução "era um sonho antigo da direita portuguesa, desde 2016, mas só se concretizou porque houve essas duas ocasiões que se somaram: um processo que ninguém esperava nem imaginava e a demissão de primeiro-ministro e secretário-geral do PS". As “ocasiões” fizeram a demissão, mas falta uma nesta análise e essa “ocasião” oculta é evidente: um Presidente demasiado empolgado em evocar o seu poder de usar a “bomba atómica” e com tiques de trigger-happy. Dá-se o caso feliz de a arma no arsenal do Dissolvente ser política e não militar.

SILLY SEASON - PROLONGAMENTO

Setembro 15, 2024

J.J. Faria Santos

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Pode ser um efeito conjugado das alterações climáticas, do triunfo fulgurante do populismo e da omnipotência das redes sociais. O que é certo é que o que se convencionou chamar de silly season ameaça extravasar estações e períodos delimitados, avançando resoluta e imparavelmente pela rentrée adentro. Vejamos 3 exemplos ricos na sua abrangência e alcance.

 

A PGR, por exemplo, apresentou-se na Assembleia da República com o seu majestoso perfil operático (figura de prima-dona com reportório limitado), “a reboque do ribombar dos tambores” da amnésia e da irresponsabilidade, visto ter considerado “súbito” (?!) o interesse pela actividade do Ministério Público e, ao não apontar os responsáveis pela “campanha orquestrada” contra tal órgão, acabou por se limitar a ser a incubadora de uma “ contagiante e incauta maledicência”, porventura “enraizada em pérfidos desígnios”.

 

Já Nuno Melo, ministro da Defesa (e do ataque, quando for preciso), assumiu-se como o “falcão” do Governo, mas a título pessoal, porque a afirmação de que “Olivença é portuguesa” e “deverá ser entregue ao Estado português” foi feita pelo “presidente do CDS”. Confuso? Nuno Melo fez questão de explicar. “A opinião que tenho sobre Olivença é antiga e corresponde a uma posição de princípio, historicamente conhecida, que várias vezes defendi. Hoje repeti-a como presidente do CDS, embora num contexto equívoco, porque presente numa cerimónia como ministro", disse ele. A culpa é do contexto. Mas o mais relevante, para futura destrinça da qualidade em que presta declarações, foi a afirmação de que se tratou “de uma resposta a uma pergunta e, por isso, insusceptível de ser concertada com os restantes membros do Governo”. Ou seja, Nuno Melo jamais responderá a perguntas na condição de ministro, visto que não poderá concertar as respostas com os restantes governantes. Em todo este episódio, resta ao ousado ministro a manifestação de “prudente gáudio” do Grupo dos Amigos de Olivença.

 

Por seu lado, a Presidência da República informou quinta-feira a nação de que o Presidente se vira forçado a cancelar uma “ida a Viseu”, por no final do jantar de véspera ter sido acometido de uma “indisposição gastrointestinal”. Já conhecíamos a expressão guerras intestinas; agora temos um intestino em guerra. As entranhas em tumulto terão sido motivadas por uma overdose de fortimel? Ou Marcelo, que informou os jornais do seu “desconforto” por Montenegro não aventar nomes para a sucessão da PGR, já não tem estômago para o estilo rural recôndito do primeiro-ministro?

EVANGELHO DE MARCELO, O PIO, SEGUNDO ÂNGELA SILVA

Junho 01, 2024

J.J. Faria Santos

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Os evangelhos são um género literário que não se deve confundir com a biografia, nem com o relato jornalístico comprometido com a verosimilhança ou a fidelidade aos factos. São compostos por narrativas e testemunhos ao serviço do proselitismo. O tema de capa da revista do Expresso, que para uns é uma desajustada crónica sentimental e para outros um imprescindível retrato da solidão do poder, é, justamente, uma espécie de evangelho de Marcelo, o Pio, segundo Ângela Silva.

 

O retrato que emerge é o de um homem “atormentado pelo gozo e pela culpa”, que “tem muita noção quando peca, fica muito aflito e sofre com isso”. Como todos os santos, tem ou teve uma relação intensa com o pecado. Que ele vai a caminho da canonização, não parecem restar dúvidas: “vai vezes sem conta visitar pobres e doentes” e desenvolveu “um dom notável para falar com pessoas à beira da morte” (embora eu achasse mais relevante se ele tivesse desenvolvido um dom para falar com as pessoas depois da morte), “senta-se ao lado dos sem-abrigo na rua a comer papos-secos e leva sempre no bolso notas de cinco e 10 euros para distribuir por quem precisa”, é “desprovido de interesses materiais”, reza a toda a hora, inclusivamente a nadar e no trânsito, e “chega a ir a Fátima de 15 em 15 dias”.

 

Cultor de uma religiosidade tradicional e popular, só lhe falta alinhar com André Ventura no uso do cilício. Por agora, fica-se pelas paredes forradas  com “pagelas de santos com orações e promessas” e pelas expedições à Capelinha das Aparições. O retrato da solidão do poder, com referências à religiosidade, ao alívio da pobreza com recurso à esmola e à noção de que a indissolubilidade do matrimónio católico condena à castidade as novas relações, aproximam-no do conservadorismo e da mitologia de uma outra figura que exerceu o poder em Portugal. Marcelo angustia-se com o receio de falhar, “a sensação de permanentemente se ficar aquém”. Como o poeta Sá-Carneiro, poderia dizer: “Num ímpeto difuso de quebranto, / Tudo encetei e nada possuí…”

 

Parece evidente que o timing deste perfil, a sua natureza de radiografia privada e mesmo íntima, fica muito a dever ao facto explicitado na própria peça de a sua popularidade ter entrado em “terreno negativo”. Ora estando em causa um profundo conhecedor dos mecanismos de funcionamento dos meios de comunicação social, por um lado, e uma jornalista com um nível de cumplicidade e até admiração pelo Presidente, por outro, pode levantar-se a questão, não pondo em causa o profissionalismo daquela, se não estaremos perante uma espécie de artigo algures entre o relato em nome próprio em registo ghost writer e o perfil biográfico autorizado com recurso a testemunhos dos “amigos mais próximos”. Estaria em causa um benefício mútuo sem erros de percepção: a jornalista construiria um valioso perfil íntimo do Presidente e este, para tentar contrariar a derrapagem nos afectos dos portugueses, ver-se-ia retratado na peça como um homem de fé, preocupado com os pobres e os doentes, numa narrativa capaz de inverter o precipício da sua popularidade.

 

Se me é permitido oferecer um modesto conselho a quem pondera mais acerca da indissolubilidade do casamento do que sobre a dissolução de governos em funções, um voto de silêncio talvez fosse mais útil. Para quem tanto procura a assimilação com o povo, nada como meditar na sabedoria dos provérbios populares: quem não aparece, esquece; mas quem muito aparece, tanto lembra que aborrece.

25 DE ABRIL SEMPRE! MARCELO NUNCA MAIS!

Abril 28, 2024

J.J. Faria Santos

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A 25 de Abril, diz o insuspeito Pacheco Pereira, o povo saiu à rua para exprimir e combater o “receio sobre a liberdade e a democracia que a actual situação política parece justificar”. Ou seja, confrontado com a “ascensão do Chega” e sem “entusiasmo pela mudança governativa em si”, a esquerda manifestou na rua que estava atenta e vigilante perante os sinais de contra-revolução que uma ofensiva conservadora, por um lado, e populista, pelo outro, parecem encetar.

 

O quinquagésimo aniversário da revolução dos cravos dá-se com um Parlamento fragmentado, com uma direita maioritária à mercê dos humores de um líder radical panfletário, com um primeiro-ministro cujo estilo oscila entre o discurso sinuoso e ambíguo, o silêncio e o voluntarismo sem sustentação, com o principal líder da oposição a tentar conciliar o “common ground” com o combate político incisivo, e com a Justiça em turbulência com uma PGR desacreditada. Houve quem tivesse a ilusão de que o Presidente da República seria o factor agregador, uma garantia de serenidade e bom senso, o que se veio a revelar um enorme erro de julgamento.

 

O episódio com jornalistas estrangeiros parece ter-se inspirado no tradicional jantar com os correspondentes da Casa Branca. Só que, fazendo jus à sua versatilidade, Marcelo não se ficou pelo arremedo de stand-up comedy, avançando pelos terrenos da soap opera, do thriller psicológico e da intriga internacional. Com traços de egomaníaco, um indisfarçável sentido de entitlement e tiques de autoritarismo que a exibição do afecto procura disfarçar, o PR avança incontrolável com um propósito em mente: a recuperação da sua popularidade. “Já estou com quase 60% de aprovação”, frisou no infame jantar.

 

O país é um acessório, a instabilidade um efeito colateral, as dificuldades de adaptação ao novo primeiro-ministro um desafio estimulante. Versado nas artes do jornalismo, para Marcelo o jantar funcionou como uma espécie de explicador. Que ele se possa sentir incompreendido, é apenas uma suave ironia. Ou o pretexto para o controlo de danos, que ele tentou fazer nos dias imediatos, e que incluiu uma flagrante inverdade. Talvez ele seja um crente na máxima de Oscar Wilde: “Nada é verdade, excepto a paixão. O intelecto nada tem de verdadeiro e nunca o teve. É um instrumento com o qual se opera, nada mais.”

MARCELO QUIS, O CHEGA SONHA E O PSD RENASCE?

Março 17, 2024

J.J. Faria Santos

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Marcelo era um homem preocupado, por causa da “maioria requentada”, da execução insuficiente do PRR e da ausência do mirífico reformismo. Está-se mesmo a ver que, agora, com o seu partido no poder (finalmente), com uma vitória “poucochinha” dependente do populista de extrema-direita, com um governo previsivelmente com vocação eleitoralista, orientado para a manutenção do escasso poder, amarrado à promessa de satisfazer todas as corporações, agora sim, é que vamos ter um executivo com ímpeto reformista.

 

Marcelo, o dissolvente politicamente dissoluto, sabia ao que ia. Especialista em ciclos e mini-ciclos, não hesitou em trocar uma estabilidade robusta pela possibilidade de explorar o descontentamento de camadas do eleitorado para catapultar os seus correligionários para o poder, encarando a ascensão dos extremistas como um dano colateral aceitável.

 

Ainda o cadáver do governo cessante não arrefeceu e já os herdeiros putativos se apressam a reclamar os despojos (como disse de forma inesperadamente eloquente o Correio da Manhã: “Cofres cheios à espera de Montenegro”). O cabeça-de-casal ainda não coligiu a declaração de bens nem procedeu à habilitação de herdeiros, mas o responsável pela certidão de óbito, com um notório apego à vida, já se prepara para dar à luz uma nova solução. Como escreveu o semanário oficioso da Presidência da República, o objectivo é “descomprimir o ambiente”.

 

Com um retumbante direita volver, os eleitores escolheram a mudança pouco segura e atingiram o porta-aviões do bipartidarismo, premiando a retórica vazia do populismo. Há quem, na senda da magistratura dos afectos do PR, prometa acarinhar os eleitores do partido da extrema-direita. Respeitar eleitores e eleitos é uma coisa; saudar escolhas assentes no protesto, sem propósito construtivo, e premiar protagonistas da incivilidade e de propostas desprovidas de seriedade e atentatórias da vida em democracia é outra.

 

Em democracia o direito a escolher é sagrado. Tal como deve ser a responsabilidade que é inerente. Se o resultado é o produto das circunstâncias e da oferta disponível, compete aos actores mais votados construir uma solução que respeite a vontade popular. E aos eleitores cabe aceitar, e depois avaliar, o resultado da vontade colectiva expressa nas urnas.

 

Repetidas vezes foi afirmado que os portugueses se teriam arrependido da maioria absoluta concedida aos socialistas em 2022. Não consta, até ao momento (é demasiado cedo, porventura), que haja um sentimento idêntico em relação aos 18% do Chega. Mas Portugal ainda não está transformado na loja do mestre André. A tal onde se pode comprar um pifarito, um reco-reco ou uma sanfona. Sanfona, aliás, tanto pode ser um instrumento musical de cordas como uma pessoa desprezível. Marcelo, de quem se sugeriu ter querido ser o popular que esterilizasse o populismo, escancarou as portas à extrema-direita em nome do regresso ao poder do seu partido. Deve ser a isto que se chama de sentido de Estado.

MARCELO IMPOTENTE

Janeiro 28, 2024

J.J. Faria Santos

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Não pode demitir o governo regional da Madeira e não pode dissolver, neste momento, a assembleia legislativa regional, mas a maior confissão de impotência do Presidente resume-se a esta afirmação: “Não vou antecipar cenários. Esta é a realidade que existe. Não posso, por muita imaginação que tenha, estar a construir cenários para além da realidade”. O Marcelo cuja imaginação é incapaz de “construir cenários” é o antiMarcelo. Se lhe falta a grande mais-valia, a da leitura dinâmica da realidade com uma grande componente prospectiva, que lhe resta? A duvidosa lealdade institucional? A simbólica magistratura dos afectos?  A gestão cada vez mais problemática da sua imagem e do seu mandato? Se alguém que passou os seus mandatos a acenar com o poder da dissolução, a interferir em áreas de exclusiva reserva dos governos, a teorizar acerca da robustez da alternativa e a apontar em fugas para os jornais possíveis líderes para o partido da oposição, subitamente se declara petrificado perante uma situação com paralelos evidentes com a que conduziu à convocação de eleições antecipadas no continente, algo vai mal no reino de Belém.

 

Ou talvez não e tudo não passe de um recurso tosco ao formalismo dos procedimentos para evitar tomar uma decisão, ou um projecto de decisão, firme, imediata e clarificadora. O Presidente dos gestos simbólicos ou enigmáticos, da expedição ao padrão dos Távoras à língua afiada afinfada ao gelado, apareceu tolhido, condicionado pelas circunstâncias. Como é evidente, tudo parece demasiado conveniente para justificar a sua aparente inacção. Este duplo padrão de comportamento confere com o carácter sinuoso do seu cadastro político-partidário, no qual alusões de correligionários e adversários a deslealdades e traições são relativamente comuns.

 

Admito que a culpa seja também um pouco da Madeira, que é um jardim luxuriante com algumas ervas daninhas. E que goza de algumas prerrogativas excêntricas. Como a que leva a que gente preocupada com 8 anos de governo socialista no continente acene desesperadamente com o risco de mexicanização do regime enquanto permanece serena perante quase cinco décadas de poder absoluto do PSD na Madeira. Ou a que conduz a que distintos tribunos denunciem no Parlamento a asfixia democrática enquanto se mostram incapazes de condenar as evidentes tentativas de controlar e condicionar a comunicação social no arquipélago.

 

E já que aludi a jardins e ervas daninhas, permitam-me que termine com um apontamento floral, citando Mário Soares em entrevista a Maria João Avillez,  sobre Marcelo (de quem a jornalista diz ser “excelente analista, excelente fonte”, sem se deter sobre a questão da informação ser potável ou não). Disse Soares : ”As análises que faz poderão ser brilhantes ou divertidas – como as notas que dava aos outros políticos, quando os avaliava… - mas não têm consistência, nem credibilidade. São como as “rosas de Malherbes”: perdem o viço e vivem apenas o breve espaço de uma manhã…”

 

Imagem: Philippe Halsman (Wikimedia commons)

A.D. (ANNO DOMINI) 2024

Janeiro 07, 2024

J.J. Faria Santos

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O futuro está a chegar. Em fascículos. Entrámos num novo capítulo, em Portugal. Com novos protagonistas em cena, velhos actores estreando novas peças e com o rei dos cenários em grande agitação táctica na poltrona presidencial. Pedro Nuno Santos promete-nos um Portugal inteiro, em comunhão de gerações, um novo ciclo virtuoso, onde à segurança e à estabilidade se juntam o dinamismo e uma visão de futuro. Luís Montenegro aposta no rebranding da AD (e no Anno Domini de 2024, o primeiro ano D.C. – depois de Costa), incumbindo a esta nova troika (Montenegro, Nuno Melo, Gonçalo da Câmara Pereira) a concretização de um governo “ambicioso, reformista, moderado, estável e maioritário”. E na solidão do Palácio de Belém, enquanto avalia os danos na sua popularidade causados pelo “caso gémeas”, Marcelo, o encenador que se deleita com os cenários, aventa a possibilidade de uma “terceira dissolução”. Já lá diz o povo, que “é quem mais ordena”, que não há duas sem três.

 

Um novo player aparece em grande destaque nesta temporada política: o Ministério Público, que é cada vez mais uma concorrente da Agência Lusa. As fugas de informação e de peças processuais têm um tratamento por parte dos órgãos de comunicação social em que nem sempre se torna explícito que veiculam o ponto de vista de uma das partes, e são apresentadas como “a verdade do dia”, sem contraditório. O MP diz que não se deixa condicionar por timings políticos, mas parece “libertar informação” em função deles. A forma como na mesma semana em que sugere que Costa é suspeito de prevaricação no âmbito da Operação Influencer o MP tornou pública a abertura de quatro inquéritos relacionados com a casa de Espinho do líder do PSD sugere uma intenção de equilíbrio de danos pouco virtuoso. A outra hipótese, ainda mais alarmante, era de gerar um pernicioso efeito de acumulação e generalização de suspeitas terríveis para a saúde da democracia. No dia em que a democracia perecer a autonomia e a independência do Ministério Público valerão zero.

 

Imagem: David Revoy https://www.davidrevoy.com

 

A ESTRELA DE BELÉM GUIOU AS GÉMEAS BRASILEIRAS?

Novembro 26, 2023

J.J. Faria Santos

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Duas gémeas brasileiras com uma doença rara que, por não se encontrarem em “situação de pobreza” nem “desassistidas”, não obtiveram o medicamento através do Estado brasileiro, receberam em Portugal, através do SNS, um tratamento de 4 milhões de euros. Chegaram a Portugal com consulta marcada no Hospital de Santa Maria apesar de não possuírem número de utente. O tratamento foi inicialmente recusado pelos neuropediatras do hospital, confrontados com o facto de crianças que estavam a ser seguidas noutros países se deslocarem a Portugal com o propósito exclusivo de receberem o Zolgensma. António Levy Gomes, coordenador de neuropediatria do hospital, declarou à TVI que “o que corria nos corredores era que o tratamento ocorreu por influência do Presidente da República”, e que a ministra da Saúde teria conhecimento deste caso, visto que a secretária dela teria abordado o assunto com o serviço dele. Na Autorização de Utilização Excepcional, apresentada junto do Infarmed, conta que a consulta teria sido marcada pelo secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales.

 

Marta Temido nega ter interferido no caso. Lacerda Sales idem. Os anteriores presidente do Conselho de administração e director clínico  alegam não terem memória do caso concreto. O Presidente da República ameaçou processar quem o tentar envolver no enredo. Marcelo reconheceu que “apurou junto do chefe da Casa Civil que chegou um pedido”, tendo enviado uma carta para o chefe de gabinete do primeiro-ministro e outra para o gabinete do secretário de Estado das Comunidades Portuguesas. As gémeas obtiveram a nacionalidade portuguesa em 16 dias e a família adquiriu um imóvel em Lisboa. A mãe resumiu toda esta trama da seguinte forma: “Conheci a nora do Presidente, que conhecia o ministro da Saúde, que mandou um mail para o hospital”.

 

Questionado pela TVI se teria sido abordado pela família acerca deste caso, o Presidente respondeu, pausadamente, nestes termos: “A minha nora, o meu filho, se falaram comigo sobre esse caso, eu francamente eh…não me lembro.” A mesma estação de televisão, porém, reproduziu um e-mail enviado por Marcelo a Levy Gomes onde o Presidente escreveu: “No meio de milhentas pedidos e solicitações falou-me meu filho Nuno num caso específico de luso-brasileiros no Brasil. Disse-lhe logo de imediato que não havia privilégio algum para ninguém e por maioria de razão para filho de Presidente.”

 

Agora que o Ministério Público abriu um inquérito “contra desconhecidos”, talvez possamos vir a perceber se esta sucessão ágil e vertiginosa de procedimentos foi produto de um simplex aditivado, se os expedientes utilizados para a obtenção do tratamento, de ética duvidosa, não feriram a legalidade e, mais importante ainda, se houve ou não intervenção de um ou mais influencers. Só espero encarecidamente não vir a tomar conhecimento de um e-mail de um qualquer membro do Governo de teor aproximado a este (que é mero produto da minha pobre imaginação): “Não devemos permitir-nos perder o apoio político do PR. O filho dele intercedeu pelas gémeas. Se o humor dele se alterar, tudo fica perdido. Não estou a exagerar: ele é o nosso principal aliado político, mas pode transformar-se no nosso pior inimigo.”

 

Devo salvaguardar que Marcelo afirmou, em 4 de Novembro de 2023, o seguinte: “O que está em causa é se o Presidente interferiu ou não interferiu. Pediu uma cunha para que sucedesse uma solução favorável a uma pretensão de duas crianças doentes? Disse que não tinha feito isso. Se tivesse feito, tinha dito que fiz.” Um Presidente disponível a empenhar a sua palavra até ao extremo da auto-incriminação ou se sente acima de qualquer suspeita ou tem a vertigem do perigo.

 

Imagem: Captura de ecrã do site do jornal Folha de S. Paulo (www1.folha.uol.com.br)

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