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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

VOCALIZOS SATÂNICOS

Novembro 05, 2023

J.J. Faria Santos

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Durante toda a sua carreira, Madonna evocou sempre, através da apropriação, do pastiche ou da recriação, a imagem da diva clássica. Carregou no sex-appeal, sublinhou a sofisticação e os looks de beleza etérea, mas desdenhou do mistério em favor de uma “autenticidade” que alimentava a provocação. O seu propósito nunca foi o de perpetuar uma imagem de perfeição imune ao esforço, ao temperamento ou à tirania dos genes. Com as inúmeras fotos glamorosas sempre conviveram os instantâneos da vida real, com Madonna em poses “naturais” desprovidas da intenção de alimentar um padrão de beleza inatingível e, sobretudo, imutável e imune às circunstâncias. As suas controversas intervenções estéticas são mais uma forma de expressão artística, de rebelião e autonomia. E mais uma vez, como se estivéssemos a ver os bastidores de um espectáculo (o espectáculo de si), pudemos observar a evolução dos seus procedimentos estéticos, mesmo em fases pouco lisonjeiras. Que será mais moderno, na era da permanente exposição e da voracidade das redes sociais, do que assistir às diversas fases do beauty enhancement?

 

Sophie Gilbert, na recensão crítica que fez na The Atlantic ao livro A Rebel Life, a última biografia da artista, escrita por Mary Gabriel, descreve na perfeição a atitude clássica perante a diva madura: “Gostamos que os nossos ícones femininos, à medida que envelhecem, se retirem silenciosamente na ponta dos pés para a semi-reclusão, afastados da nossa implacável curiosidade e do nosso olhar impiedoso.” Esperar que Madonna se comportasse desta forma seria contraintuitivo, se mais não fosse porque ela é, nas palavras de Gilbert, mais do que uma artista “uma obra de arte que vive, respira e está em constante metamorfose – uma Gesamtkunstwerk “. Esta ideia de obra de arte total, assente numa exposição ao olhar do espectador induz, neste caso, uma falsa sensação de conhecimento. É que, como escreve Gilbert, para a artista a “auto-exposição é mais acerca da ofuscação do que da revelação. Cada nova identidade que ela dissemina é apenas uma camada diferente; quanto mais se vê dela, mais a ‘verdade’ é obscurecida”.

 

A Madonna da Celebration Tour, que agora chega a Lisboa, é a artista que viu a sua obra de arte interrompida por cinco dias. Cinco dias da sua vida ou da sua morte, como ela própria diz. Numa era dominada pela indústria da juventude, a derradeira provocação pode ser prolongar a idade activa no show business. De alguém que já teve um dos seus concertos definido pelo Papa João Paulo II como “um dos espectáculos mais satânicos na história da humanidade”, poder-se-ia supor que seria a candidata ideal a um pacto faustiano. Será, porém, mais sensato imaginar Madonna próxima da ideia do corpo mutante dos filmes de David Cronenberg. Como se, no exercício do inalienável direito à autodeterminação da sua imagem, dissesse, de forma desassombrada e profana: “Este é o meu corpo, o corpo de Madonna, tomai e comei.”

MADONNA PERDEU A FACE?

Fevereiro 12, 2023

J.J. Faria Santos

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A mulher das mil caras terá perdido a face, dizem. A mãe de todas as reinvenções, da reciclagem dos looks clássicos de Hollywood ao vanguardismo com um toque trash, é agora acusada de se descaracterizar numa manobra ousada para enganar o espelho do tempo. Luís Osório escreveu que “numa das últimas madrugadas o mundo soube que não mais verá Madonna”.

 

Claro que o “problema” não é apenas a imagem; é o petulante e insolente hábito de dizer o que pensa e a recusa em adoptar um estilo de vida visto como apropriado para a sua idade e o seu estatuto. Como se uma provocadora especializada em esticar os limites do interdito se acomodasse aos estereótipos da alta burguesia, e se remetesse a fugazes aparições de prestígio em talk shows e se refugiasse no museu de uma carreira de sucesso. Para quem, como Madonna, a memória e o passado são detonadores do processo criativo, isto seria impensável.

 

“Poor is the man whose pleasures depend on the permission of another”, declamava ela em Justify my Love, um exercício de spoken word em colaboração com Lenny Kravitz, que pode ser visto como um mote para a carreira e para o seu projecto de vida. Esta radical independência, esta afirmação do prazer despojado de pecado, tanto se manifesta na ousadia dos temas e na encenação da sua música como na predilecção por namorados décadas mais novos ou na redefinição das linhas do seu rosto ou ainda na reformatação do seu corpo. Em reacção aos comentários adversos em relação à sua aparição na cerimónia dos Grammys, Madonna reagiu aludindo ao “idadismo” e à “misoginia”. E rematou: “Nunca pedi desculpa pela minha aparência e não é agora que vou começar.” 

 

Podemos sempre admitir que ao contrário do que aconteceu até há pouco tempo na sua carreira, em que ela recorreu a imagens reconhecíveis do passado para entre o pastiche e a recriação actualizar modelos de glamour, Madonna tenha agora optado por se aproximar de uma sensibilidade do futuro que transcende o humano. O que pode explicar que muitas pessoas vejam no formato do seu rosto em publicações no Instagram, seja por efeito de intervenções estéticas, maquilhagem ou utilização de filtros, uma qualidade alienígena.

 

O que importa é que Madonna se reconheça no rosto que oferece ao mundo. E que a diferença não se transforme em estranheza, ainda para mais em relação a quem, como ela, sempre fez a apologia da diversidade e da inclusão. Aproximação à estética ciborgue, arremedo de body art ou simples batalha necessariamente inglória contra o passar do tempo, é Madonna, como sempre, que comanda a performance, e o espectáculo, como sabemos, tem de continuar. E não falta quem pague para ver.

 

Imagem: Luigi & Iango (Vanity Fair - The Icon Issue)

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