O INSULTO É UMA NOTA PESSOAL
Maio 16, 2021
J.J. Faria Santos
Qual é o propósito de, ao redigir uma notícia, adicionar uma “nota pessoal” a seguir ao nome de uma deputada, sendo aquela a palavra “Preta”? Tratando-se de uma anotação “pessoal”, presume-se que era destituída de interesse profissional, não se destinando, digamos, a um futuro trabalho jornalístico acerca da diversidade humana no Parlamento, centrado, designadamente, na pigmentação da pele. Mas, afinal, a fazer fé numa notícia do Expresso, havia uma intenção profissional na nota pessoal. Terá sido a forma que o jornalista Hugo Godinho encontrou de destacar a necessidade de escrever correctamente o nome da deputada Romualda Fernandes, que não escutou com clareza quando pronunciado pelo presidente da Assembleia da República. Portanto, atordoado pelo seu défice auditivo ou pela dicção questionável de Ferro Rodrigues, Godinho não terá encontrado melhor lembrete. Poderia não saber a exacta grafia de um nome, mas era inesquecível a sua condição de “preta”. Deve ser uma questão de visibilidade (ou de invisibilidade).
Este procedimento já conduziu à demissão do editor da secção de política da Lusa e à instauração de um processo de averiguações ao autor da notícia. Hugo Godinho disse ao Público: “Ninguém pode condenar ou lamentar a situação mais do que eu. Ontem mesmo, assim que tive conhecimento da alarvidade que tinha sido publicada, obviamente por acidente, negligência (que assumo inteiramente), pedi desculpa formal tanto à senhora deputada como à líder parlamentar do PS.” Ainda assim, Godinho considera que o termo que utilizou não tem um “sentido pejorativo”. Em que ficamos? A “alarvidade” que ele “condena” e “lamenta”, e que motivou um pedido formal de desculpa, consistiu, do ponto de vista dele, exactamente em quê? No pouco zelo na elaboração da notícia? Na forma leviana como reduziu uma cidadã, representante eleita pelo povo português, a um estereótipo étnico-racial?
Parece que o jornalista Hugo Godinho tem acompanhado as actividades do partido Chega. Tempos houve em que era moda alertar para os efeitos perniciosos da promiscuidade entre a política e o jornalismo. Não sei se esta premissa se aplica a este caso. O que seguramente sei é que a maneira tosca como foi utilizada num trabalho jornalístico uma palavra historicamente conotada com a degradação do ser humano é uma mancha na actividade da agência noticiosa nacional. E que a única forma de redenção possível é a condenação sem tergiversações de uma formulação inequivocamente racista.
Imagem: Expresso.pt