FAHRENHEIT 451 CANADÁ
Setembro 19, 2021
J.J. Faria Santos
Numa cerimónia chamada de “purificação”, que decorreu numa escola de Ontário, no Canadá, cerca de 30 livros foram queimados por serem considerados de duvidoso conteúdo educativo. Não sei se “os livros saltaram e dançaram como aves queimadas, as asas ardendo como penas vermelhas e amarelas”, como no livro de Ray Bradbury (Fahrenheit 451) que François Truffaut adaptou ao cinema, mas, para além da sensibilidade pessoal que me faz equivaler este acto a um herético atentado cultural, parece-me evidente que se trata de um gesto totalitário impróprio de uma sociedade democrática.
O auto-de-fé ocorreu em 2019, mas só agora foi divulgado e enquadrou-se numa acção de remoção de milhares de livros de trinta escolas, a generalidade deles destruídos ou reciclados, por alegadamente apresentarem estereótipos negativos dos povos indígenas. Livros de banda desenhada, romances e enciclopédias foram incinerados nesta onda moralista que reclama ser “um gesto de reconciliação” (?) para com os ditos povos. A cerimónia ter-se-á completado com a utilização das cinzas como adubo na plantação de uma árvore, confessadamente para “transformar o negativo em positivo”. Não há gesto ecológico que redima o fanatismo. Nem boa vontade que tolere a descontextualização e a opção por rasurar e obliterar em vez de contestar e debater.
Este detalhe da árvore remete-me para uma passagem da obra de Bradbury em que Granger evocava, em conversa com Montag, um conselho do seu avô: “Todos devemos deixar qualquer coisa atrás de nós, ao morrermos (…) Um filho, um livro, um quadro, uma casa, uma parede ou um par de sapatos. Ou ainda um jardim plantado de flores. Qualquer coisa que a mão tocou e para onde irá a alma no instante da morte. E quando as pessoas olharem essa árvore ou essa flor que plantámos nós, estamos lá, sob os seus olhos.” Os promotores do auto-de-fé fertilizaram com as cinzas do radicalismo a árvore do extremismo. Lamentável, mas nada original. Não se trata apenas de reescrever a História; o zelo dos donos da verdade estende-se às histórias de ficção.
(Fahrenheit 451 – Mil Folhas/Público – tradução de Mário Henrique Leiria)