A IMPORTÂNCIA DE SE CHAMAR SOARES DOS SANTOS (OU AZEVEDO)
Março 26, 2023
J.J. Faria Santos
Os ricos, no seu habitat natural, amparados pelo abundante cash-flow das suas cash-cows e sobretudo iluminados pelo fulgor da meritocracia, apreciam avaliar depreciativamente os subordinados, os insubordinados e a classe dirigente. Belmiro de Azevedo, por exemplo, referindo-se ao actual comentador-em-chefe da SIC, disse: “Marques Mendes nem para porteiro da Sonae servia”. Já Alexandre Soares dos Santos foi ligeiramente mais generoso com um ex-primeiro-ministro: “Contratava o Sócrates. Entrava como trainee. Ia fazer estágio de loja.” Como quem sai aos seus não degenera, os herdeiros prosseguem a mesma linha majestática, reclamando uma superioridade natural, ostentando uma condescendência enjoada com um país que não os merece e um brutal desprezo por uma classe política e por um regime que encaram como um estorvo.
Se Cláudia Azevedo optou por contestar num tom institucional a ideia de que as empresas de distribuição se estavam a aproveitar da subida da inflação para aumentar as margens de lucro, atribuindo hipoteticamente a culpa ao “presidente da Rússia, à China e à seca”, Pedro Soares dos Santos preferiu a linha dura: o diálogo com o Governo só existirá se este se “tornar honesto” e “o Estado português foi quem mais beneficiou com a inflação e quem menos fez pelas pessoas”. Se o pai considerava que “em Portugal não há democracia”, o filho considera que para que todos ganhem basta “o mercado e a livre concorrência” funcionarem. Se o progenitor afirmava não gostar de sindicatos, o herdeiro valoriza a “paz social” e lamenta não ter “mais flexibilidade na contratação e na dispensa das pessoas”. Porquê? Numa tese certamente empírica (e de uma originalidade assinalável) defende que “há muita gente que às vezes desiste de trabalhar. Querem emprego, mas não querem trabalho.”
Embevecido e entusiasmado com a voz grossa dos privilegiados, João Miguel Tavares (JMT) escreveu no Público um artigo acerca da importância do fuck you money, definido como a “quantidade de dinheiro necessária para podermos mandar um indivíduo ou uma organização pró c****** sem que a nossa vida fique arruinada”. Os Azevedo e os Soares dos Santos podem, pois, criticar com violência o Governo porque são muito ricos. Para reforçar a coisa, JMT alude à “profundidade da ligação histórica entre o dinheiro e a liberdade de opinião”. O que nos poderia levar a considerar que só teriam liberdade de opinião os 5% da população que em Portugal concentram cerca de 42% da riqueza. Ou os 10% que acumulam 25% do rendimento do país. Não fosse, claro, o caso dos milhões de portugueses que numa qualquer altura, em diferentes fases da sua vida, emitiram as suas opiniões livremente, se manifestaram nas ruas ou exerceram o direito à greve, prescindindo de parte de um vencimento muitas vezes exíguo (uma espécie de fuck me money).
“Portugal é um assunto demasiado sério para ser deixado apenas nas mãos dos governos”, concluiu o colunista em defesa da “palavra a dizer” que o sector privado deve ter em relação aos gastos do Estado. Como tal já sucede ao nível, por exemplo, do Conselho Económico e Social e da Comissão Permanente de Concertação Social, resta perceber o alcance das palavras de JMT. Quanto à mais-valia do fuck you money, basta pensar no exemplo lapidar de Donald Trump para arrepiar caminho. Recriar Clemenceau pode ser vistoso, mas confiar demasiado no bom senso e na generosidade de uma oligarquia de ego inflado pode ser a receita para fuck up um país.