DELÍRIO, FANTASIA E DESORDEM
Abril 11, 2021
J.J. Faria Santos
Que alguém que exibiu um estilo de vida faustoso, com gastos exorbitantes infinitamente superiores aos rendimentos auferidos (para os quais deu explicações que evoluíram da fortuna da família e de um recheado cofre materno até estabilizarem nos empréstimos de um fidelíssimo amigo), que acabou de escutar um juiz de instrução catalogar esses fornecimentos em dinheiro vivo (solicitados em tom imperioso e em código pouco imaginativo) como prefigurando “um crime de corrupção passiva de titular de cargo público sem demonstração de acto concreto”, que acabou pronunciado por três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos, saia do tribunal e declare que “difamaram durante sete anos um inocente” só pode ser produto de um delírio ou de uma tosca manobra de ilusionismo.
Que Ivo Rosa se tenha referido aos diversos argumentos do Ministério Público como “baseados na especulação”, “mera fantasia”, “total incoerência”, ou “total falta de prova”, não surpreende. Não exactamente pelo perfil do juiz, mas sobretudo pela ambição desmedida da equipa chefiada por Rosário Teixeira em compor uma acusação que fosse uma espécie de libelo épico, um fresco da teia de corrupção que envolveria o regime. Tratando-se, por natureza, de um crime de difícil comprovação (em que a prova directa é, regra geral, inexistente), seria aconselhável menos dispersão e amplitude no objecto da investigação. Convencido da ilicitude da origem dos fundos que garantiam a Sócrates um estilo de vida caracterizado pela incontinência de gastos, o Ministério Público achou que bastaria elencar um vasto conjunto de fluxos financeiros, conjugá-los com determinadas datas e relacioná-los com decisões políticas para estabelecer um incontestável nexo de causalidade. Pode ser que o megaprocesso não resulte, como pode parecer agora, numa miniacusação, mas o sentimento de frustração pode prevalecer.
A comoção, o pesar e o quase alarme social podem ser manifestamente exagerados. O Tribunal da Relação de Lisboa terá a última palavra acerca de quem irá a julgamento responder por que crimes. Veremos se será contraditado, por exemplo, o entendimento do juiz de instrução no que concerne à inexistência de fraude fiscal. E não esqueçamos que, para o bem e para o mal, citando Francisco Teixeira da Mota, “a procissão está para durar – talvez mais dez ou 15 anos “, sendo que nada pode ser dado como adquirido “quanto ao destino final de redenção ou de cadafalso de cada um dos penitentes”. Aconselha-se ponderação e alguma racionalidade a figuras públicas com responsabilidade cívica. Não se justifica o “coração pesado” da ex-candidata presidencial, nem o apelo do director-adjunto de informação de um canal televisivo para que Ivo Rosa seja posto na ordem (“em seu devido lugar, que é o que ele precisa”). O justiceiro quer a “justiça” a qualquer preço. O justo sabe que o único preço que a justiça deve pagar é o que se associa ao preceito de ser preferível absolver um culpado (quando a prova se mostre insuficiente ou a dúvida irresolúvel) a culpar um inocente. Subverter o processo penal, perante uma avassaladora convicção pessoal de culpabilidade, poderá ser tentador, mas seria abrir caminho à mais abjecta arbitrariedade.