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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O CASO DA POLÍTICA DE CASOS

Junho 25, 2023

J.J. Faria Santos

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O “caso” político, ao contrário do “escândalo”, comporta “um lado obscuro, críptico, que é preciso decifrar”, defende António Guerreiro na sua coluna no Ípsilon. De tal forma assim é, prossegue Guerreiro, que a “decifração” se transformou no “exercício preferido” do jornalismo, que “teve de abandonar, em larga medida, outras tarefas de que estava incumbido na sua idade clássica”. Nesta circunstância, se não é difícil responder às perguntas o quê, quem, quando, onde e como, já o porquê parece ficar envolto numa capa de especulação e dissimulação. E se o jornalismo funciona, citando Daniel Ricardo, como “um espelho da realidade [e] não pode acolher histórias inventadas nem relatos inquinados pela falta de fidelidade aos factos”, a acção detectivesca sobre “factos políticos” (uma subcategoria demasiado devedora da interpretação e da opinião), onde parece ser mais importante confirmar um pré-juízo de culpabilidade ou falsidade do que apurar a verdade dos factos, conduz à subversão da prática jornalística. O que ainda é mais grave se notarmos, como Guerreiro sublinhou, que muitos decifradores, analistas, comentadores são, eles mesmos, actores políticos ou ex-actores políticos trabalhando para o comeback ou empenhados na salvaguarda do seu capital de influência.

 

Os decifradores defendem a gravitas, mas pelam-se pela dessacralização do poder; apreciam os ritos, compreendem a importância da sobriedade e da discrição, mas advogam o absolutismo da transparência. Toda a acção política é pública, todo o escrutínio depende da agenda totalitária, toda a omissão é a prova de uma ambição inconfessável. Todo este cenário, já por si complexo, é agravado por uma circunstância específica: a residência no Palácio de Belém do criador dos factos políticos, fonte de jornais e televisões, uma sorridente e melíflua central de desinformação, ex-decifrador profissional sempre disposto a aparecer como explicador benévolo. Veja-se o caso da escala de Costa na Hungria. Marcelo não viu “problema político específico”, uma formulação (propositadamente?) arrevesada, mas apressou-se a levantar hipóteses de explicação que não lhe competiam dar, desde a necessidade de fazer a escala até à vontade de “dar um abraço” a Mourinho. O resultado foi um debate acalorado e com a extracção de ilações absurdas, que incluíram a acusação de falta de transparência pelo facto de o encontro não constar da agenda até ao uso indevido de bens do Estado.

 

Num artigo que escreveu para o Público há cerca de um mês, Pacheco Pereira considerava que “as regras do jornalismo desapareceram do espaço público, substituídas por um tratamento comicieiro e politicamente motivado e orientado, que, por falta de alternativa, deixa todos entregues à intoxicação”. Se não há dúvidas de que a “democracia morre na escuridão”, talvez fosse oportuno meditar se não a estaremos a cegar com o brilho dos holofotes do populismo, das notícias falsas e das teorias da conspiração, sob o pretexto da transparência e do escrutínio.

 

Imagem: istockphoto.com

O ESCORPIÃO (MARCELO A.C.)

Setembro 05, 2021

J.J. Faria Santos

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Traição, golpe baixo, veneno, escorpião: palavras nos últimos dias associadas a Marcelo Rebelo de Sousa, a propósito das memórias de uma figura pública. Não são as memórias de Adriano, trata-se das memórias de Balsemão; não são histórias de mil e uma noites, são episódios de uma vida em mil páginas. Subitamente, vimo-nos transportados para uma época aparentemente longínqua, algures num tempo impreciso de Marcelo a.c. (antes da canonização).

 

O Marcelo d.c. (depois da canonização – período que pode ser grosseiramente datado como tendo início coincidente com o primeiro mandato como Presidente da República), corresponde à projecção de uma imagem de pai espiritual da nação, num misto de mestre de sapiência, confessor e guru de auto-ajuda. Popular e afectivo, acessível e jocoso, presente até ao limite da intrusão, inscreveu-se no quotidiano de todos nós. 

 

O Marcelo a.c. era descrito como um génio mefistofélico hiperactivo, instável e propenso a tropelias, destilando sarcasmo e veneno em doses equivalentes, com um talento desmesurado para a elaboração de cenários políticos e uma vocação incontrolável para ser fonte de manchetes jornalísticas, aos quais sacrificaria a lealdade e a discrição.

 

Não se pode dizer que o retrato do actual Presidente da República que emerge do livro de Pinto Balsemão seja surpreendente ou original. E também não nos devemos prender em demasia a um retrato-robô, sobretudo tratando-se de uma figura com tantas nuances. Como escreveu Hugo Gonçalves no seu romance Deus Pátria Família: “Os limites da memória humana existem por um motivo, não são uma falha evolutiva, antes um sistema de protecção existencial. É preciso esquecer para seguir adiante.” Como o próprio Balsemão reconhece, os dois têm hoje uma “relação cordial”.

 

Claro que há sinais de permanência, indícios de um “como sempre, como dantes”. Aí estão as gordas do Expresso para o provar. O mestre da culinária jornalística, por interposto gabinete, a “marcar a agenda”, a soprar para o semanário a sua “análise” de comentador encartado, Presidente da República em part-time. No fundo, aquilo que em artigo no Público Pacheco Pereira denomina de “jornalismo dos cenários”, que “teve um efeito de superficialização da actividade política e introduziu um estilo especulativo em que, como não é escrutinado, o público não percebe como muito pouco acerta na realidade e como muitos dos ‘cenários’ nunca se realizam.” Ao permitir mais visibilidade ao Expresso e se garantir maior circulação paga, agradará ao patrão da Impresa? Ou ficará desgostoso com este padrão de jornalismo?

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