A HISTÓRIA NÃO ACABA ASSIM
Abril 17, 2022
J.J. Faria Santos
Se nos idos de Março se assinalou o momento em que o período de tempo em democracia, em Portugal, ultrapassou os 17499 dias de ditadura, eis que, no cruel mês de Abril, um reputado jornalista, comentador e romancista, com acesso privilegiado aos meios de comunicação social, decretou que “estamos a viver num clima de intimidação concertada sobre o pensamento”, algo que ele nunca experimentara “em trinta anos de escrita em jornais”.
Volta e meia, jornalistas com créditos firmados e/ou cargos de direcção, habituados a zurzir com total liberdade e contundência as figuras públicas sob o seu escrutínio, alargam-se em lamentos ou denúncias quando estas exercem o seu direito de resposta, sobretudo se este for feito de forma assertiva e ríspida. Recordo, por exemplo, a reacção de João Vieira Pereira ao SMS em que António Costa criticava com violência a sua prática jornalística. Se é o poder e o seu exercício que tem de ser monitorizado, a bem da saúde da democracia, não se justifica que qualquer reacção mais epidérmica dos visados dê azo a uma invocação de condicionamento ou de atentado ao acto de informar. Da mesma forma, quando a sociedade civil reprova acerbamente as tomadas de posição de jornalistas e comentadores, tal não significa que esteja em curso uma estratégia de silenciamento.
No caso presente, Miguel Sousa Tavares queixa-se de que quem não pensar “segundo a cartilha pronta a pensar fornecida pela NATO e pelos países-guia do mundo ocidental é imediatamente catalogado como amigo de Putin e cúmplice moral das atrocidades russas na Ucrânia”. O colunista do Expresso, para “acabar de vez com este sufoco”, acaba por recorrer a um mote que espalha pelo seu último artigo: “A invasão e a guerra que a Rússia levou à Ucrânia não tem justificação. Os massacres e os assassínios deliberados de civis não têm perdão.”
“Intimidação concertada sobre o pensamento” será o debate virulento acerca da guerra da Ucrânia, com a grande clivagem entre os que condenam sem contemplações a invasão e os que a censurando se esmeram na contextualização e na tese da” humilhação” ocidental à orgulhosa Rússia? Então agora o debate intimida? Não esclarece nem clarifica? Não se permite vivacidade, confronto de ideias, interpelações mais acesas?
Claro que Sousa Tavares poderá estar a referir-se também ao ambiente tóxico das redes sociais, onde se confunde com frequência debate franco e incisivo com má-criação e insulto gratuito, mas isto é algo que ele já tratará como um dado adquirido. Seguramente não lhe faltará arcaboiço mental e intelectual para lidar com posts e tweets corrosivos. Ou sentir-se-á vítima do bullying da maioria?
A necessidade de contextualização, a análise das circunstâncias, a ponderação dos interesses e a necessidade de verificação dos factos são passos fundamentais no caminho para a verdade. Mas há momentos em que a bruta manifestação da realidade dispensa a nuance. Uma invasão é uma invasão é uma invasão. E se, como Sousa Tavares diz, “a coragem está na paz, não nos falsos heroísmos”, o preço da cessação das hostilidades não pode ser a subjugação perante o agressor suspeito de crimes de guerra.
Confrontada com o continuado envio de material militar por parte dos Estados Unidos para a Ucrânia, a Embaixada da Rússia em Washington emitiu uma nota diplomática onde acusava os americanos de estarem a “atirar combustível” para o conflito e de contribuírem para que “o derramamento de sangue continue”. Não duvido que o colunista do Expresso apreenda a colossal hipocrisia contida nesta posição com laivos de pacifismo. A supressão ao apoio americano significaria um “derramamento de sangue” unilateral.
“Intimidação concertada” foi a estratégia russa que conduziu à invasão da Ucrânia (que Miguel Sousa Tavares nunca acreditou que Putin desencadeasse) e à deflagração da guerra. Nada que se confunda com as vicissitudes do exercício da liberdade de expressão numa democracia em paz.
Imagem: expresso.pt