Sentimo-nos sitiados. Primeiro com a pandemia, agora com a guerra, experimentamos uma subversão do nosso modo de vida, um condicionamento de difícil adaptação, sintetizado na fórmula “novo normal”. E embora saibamos o quão ridículo pode parecer o drama de um isolamento profiláctico ou o stress da corrida às bombas de gasolina comparados com um bombardeamento, isso não nos serve de consolo. Já nos preparávamos para resgatar os bons velhos tempos pré-covid quando, subitamente, o espião que veio do frio com apetites imperiais congelou as nossas ambições, inscrevendo de novo na Europa os sinais da guerra.
Sempre olhei, com um misto de admiração e perplexidade, para aquele tipo de pessoas que se movem na vida como se ela representasse um direito adquirido à festa perpétua e ao jardim das delícias. Não que as circunstâncias da vida corrente me sejam particularmente penosas ou deprimentes; simplesmente acho que o episódio quotidiano da nossa existência implica esforço e dedicação, da nossa parte, para o tornar aprazível. E mesmo que não nos impressionemos com a frase de Sartre, “o inferno são os outros”, não nos podemos sentir, como escreveu Susan Sontag em “Olhando o Sofrimento dos Outros”, “desiludidos (mesmo incrédulos) quando confrontados com a evidência daquilo que os humanos são capazes de infligir a outros humanos sob a forma de atrocidades horríveis, por suas próprias mãos”, porque isso significaria que ainda não teríamos atingido a “idade adulta moral ou psicológica”.
Até agora, para a generalidade dos portugueses e dos europeus, a evocação da paz limitava-se a um ritual de cada passagem de ano, como as passas e o fogo-de-artifício, um desejo genuíno mas contaminado pela leveza do adquirido com sabor a perpetuidade. “A convicção de que a guerra é uma aberração, ainda que não seja possível detê-la, é fulcral nas perspectivas modernas e um sentimento ético”, considerou Sontag. Para logo a seguir nos lembrar que “a guerra tem sido a norma e a paz a excepção”.
Agora que a guerra se impôs com toda a sua brutalidade e toda a sua crueldade, quedamo-nos sitiados nas nossas certezas morais e nos nossos juízos inequívocos. Não somos diplomatas escravos da subtileza e do equilíbrio na corda bamba das possibilidades. Não nos peçam que troquemos a indignação inflamada pela ponderação asséptica dos interesses das nações, que vejamos como admissível a negociação com um sádico desprovido de empatia. Porque negociar é ceder. E ceder a um fora-da-lei agressivo e agressor é premiar o inominável.
E, no entanto, negociar é preciso. Os interesses das nações não são desejos esotéricos de entidades abstractas. Os interesses das nações são os interesses dos que nela habitam, indisponíveis para viver sob a ameaça iminente de um conflito nuclear. E a guerra, mesmo que justa, é desumana. De alguns grandes agravos, amorosos ou familiares, do foro íntimo ou profissional, diz-se, com frequência, que mesmo que não se esqueçam, devem ser perdoados. Susan Sontag diz que “fazer as pazes é esquecer. Para a reconciliação, é necessário que a memória seja imperfeita e limitada.”
A reconciliação não é mais do que “o restabelecimento de relações entre pessoas desavindas”, relações de preferência pacíficas. É quanto basta e é incontornável. Não toleraremos o autocrata e seguramente não o perdoaremos. Simularemos uma “memória imperfeita e limitada” e tentaremos manietar o agressor na teia dos seus próprios interesses, condicionando a sua gula e a sua ambição, ganhando tempo. Até que apareça alguém que não use o engenho humano para desvalorizar o sentimento de humanidade.
Imagem: Mstyslav Chernov (war.ukraine.ua)