Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O SENTIDO DO FIM (DA LEGISLATURA)

Fevereiro 26, 2023

J.J. Faria Santos

20230226_135926.jpg

A síntese estava estampada na primeira página do Público: “Portugueses dão negativa ao Governo, mas querem que fique até ao fim”.  53%  acham que o Governo é mau ou muito mau, mas 70% consideram que “é melhor para o país” que ele cumpra o mandato. Passada a perplexidade inicial (serão os portugueses masoquistas? Irresponsáveis? Inconsequentes?), eis que os politólogos se apressaram a adiantar duas explicações, que podem ser exclusivas ou cumulativas: a preferência pela estabilidade política e a falta de uma alternativa credível.

 

A própria sondagem do Cesop indicia que Luís Montenegro é apenas menos mau do que Rui Rio. A oposição em geral, porventura espicaçada pelo rol de casos que assolou o executivo, uns reais, outros mais ou menos artificiais, tem optado por carregar nas tintas e desafiar o delírio. Montenegro achar que Costa está a exibir a sua “faceta de comunista” ou Rui Rocha a denunciar o “gonçalvismo” e a “agressão insustentável à propriedade privada” são exemplos de reacções desproporcionadas que retiram credibilidade aos seus autores no eleitorado central que decide eleições.

 

Por outro lado, parece evidente que após sete anos de poder, marcados por uma pandemia, pelo regresso da guerra à Europa e pelo retorno da inflação, a circunstância da existência de uma maioria absoluta revelou cidadãos mais exigentes, como se tivessem acabado os álibis para a persistência dos problemas crónicos da vida portuguesa. Daí o crescendo de reivindicação e o multiplicar das acções de protesto, podendo extrapolar-se que os portugueses, para além das razões relacionadas com a sua situação pessoal, se possam sentir mais livres para protestar, conscientes de que esse facto não porá em causa a estabilidade política.

 

A figura-chave do jogo político português continua a ser António Costa. Nunca suscitou grandes paixões, embora concite ódios colossais. Reúne a seu favor a experiência, a inteligência, a frieza e o sentido táctico, e transmite uma segurança assente no bom senso e na moderação. E contrariamente ao chavão, não é desprovido de sentido estratégico ou visão de futuro, simplesmente tem um sentido agudo da política como arte do possível. É por isso que com um empate técnico no tempo regulamentar, ele acaba por ganhar nos descontos ou no prolongamento. Até um dia, claro. Mas isso, para recorrer a outro chavão, será a democracia a funcionar. Um Governo pode e deve ser avaliado regularmente, mas só deve verdadeiramente ser julgado no final da legislatura. E, para isso, tem de cumpri-la.

AS TIAS E OS BETOS CONTRA O ESTALINISMO

Janeiro 15, 2023

J.J. Faria Santos

assess_costa_cm.jpeg

De todos os passos em falso do Governo nos últimos tempos, dados com uma determinação alucinada ou com uma displicência atroz, o caso de Carla Alves, secretária de Estado da Agricultura durante 24 horas, parece-me o mais insólito. A ideia de que alguém detentora de uma conta conjunta onde os montantes depositados foram largamente superiores aos rendimentos declarados, sem que para tal tenha adiantado uma explicação razoável, possua capacidade e autoridade para exercer um cargo político é simplesmente incompreensível.

 

A sucessão de erros e escolhas pouco avisadas feitas pelo Governo contribuíram para um desgaste acelerado, cavalgado pela oposição (o que é natural), subtilmente explorado pelo Presidente da República (o que não tem nada de surpreendente) e glosado até ao infinito pelos média. Neste último caso, quer seja por orientação editorial, por convicção, ou por submissão às condicionantes das audiências, houve pouca ênfase na exposição dos factos  e muito ruído sob a forma de proclamações definitivas do alto do trono da superioridade ética por parte dos comentadores. No seu artigo de ontem no Público, Pacheco Pereira acusou o Governo de ser “o primeiro dos reforçadores do populismo” por causa de “erros clamorosos e culpas sem responsáveis”, para depois se alongar numa crítica ao universo mediático, onde se destacam “os próceres da direita radical” com uma prática em que “há apenas uma constante que nada tem a ver com escrutínio, mas com o uso político da má-fé. Não é jornalismo, é propaganda política”. Esta semana foi noticiada, com destaque, a demissão de um assessor. Qualquer dia, despede-se do gabinete do primeiro-ministro um funcionário do apoio técnico-administrativo ou do pessoal auxiliar (sem desprimor para estas funções) e temos direito a uma “última hora” com a iminência da queda do Governo.

 

A escalada na contestação ao executivo socialista subiu mais um patamar com a excêntrica (ao nível dos argumentos e não só…) manifestação em frente à sede do PS. As tias e os betos (não sabemos se também os queques…) marcaram presença porque, citando uma entrevistada no Jornal da Noite da SIC, “hoje em dia estamos a ser policiados por um Estado corrupto. Um Estado que nos tolda a liberdade, nos tira todos os direitos e garantias. Nós estamos a entrar num estado socialista-‘stalinista.” A manifestação, convocada através de grupos de Whatsapp, teve como lema “socialismo out” e foi apresentada como apartidária. Só não se percebe é como é que ela se concretizou num Estado onde não existem direitos nem garantias. Devemos, certamente, dar graças pela existência da FLICA (Frente de Libertação de Cascais e Arredores).

ENQUANTO A CIDADE DORME

Dezembro 29, 2022

J.J. Faria Santos

Bernie_sic.jpg

Enquanto a cidade dorme, o Governo desmembra-se. Pela calada da noite, quando todos os gatos são pardos e as hienas se agitam nas sombras, anunciam-se demissões, afiam-se punhais e armam-se ciladas. Inimigos cordiais avaliam cenários, sopesam argumentos, apagam rastos, observam com apreensão o comércio da informação. E os adversários, em reagrupamento ou reestruturação, como tubarões inebriados pelo sangue que goteja, confundem (ou fingem que confundem) os seus desejos com o interesse nacional, acenam com o irregular funcionamento das instituições e decretam o caos irremediável.

 

Afastado o activo tóxico, a harpia gananciosa que calçava Louboutin, eis que se segue o processo de desminagem em curso, causando danos colaterais de vulto. O Governo, cujo primeiro-ministro se exibiu em entrevista em pose régia e discurso envolto em húbris, parece empenhado em bater o recorde nacional de demissões. Verdadeiramente grave, porém, é a sensação de inércia, que nem sequer pode aspirar a ser confundida com calculismo. Já tarda que António Costa reclame para si as rédeas. Cavalo à solta pode adequar-se à poesia, mas é letal para a administração do poder. Estranha-se que quem resistiu a uma pandemia, suportou os estilhaços de uma guerra e enfrentou o regresso da inflação possa sucumbir à modorra depois de ter alcançado a sua vitória política mais substantiva.

 

Enquanto a cidade dorme, e o primeiro-ministro se vê impelido a planear a regeneração, eis que o impetuoso André e o nobre falido Nuno reclamam eleições antecipadas. Mas o gongórico Rangel já veio garantir que o PSD exibe uma “postura de sentido de Estado” e que “o país não pode andar de eleições em eleições”. E do alto do seu púlpito, os comentadores indignados, entalados entre as suas convicções íntimas, o brio profissional e os imperativos do share, clamam: “Onde é que anda Luís Montenegro?”

O INVERNO ESTÁ A CHEGAR

Agosto 28, 2022

J.J. Faria Santos

Coat_of_arms_of_the_Assembly_of_the_Portuguese_Rep

Com o desemprego registado em mínimos históricos e o país a crescer acima da média da EU, mas com uma taxa variação homóloga da inflação acima dos 9% e uma guerra no coração da Europa de consequências imprevisíveis, ainda bem que temos dirigentes políticos, líderes de opinião e académicos empenhados no debate de ideias, no diagnóstico das situações e na apresentação de soluções, capazes de ver para além da espuma dos dias, isto é, separar o acessório do essencial, o episódio circunstancial da tendência longa. Era bom que assim fosse, mas como muitas vezes sucede, há uma elite (entendida em sentido lato) atolada na malaise, desgostosa com Portugal e com os portugueses, em busca de um desígnio perdido, que se compraz na amálgama de situações de gravidade e importância variável para compor um retrato de um país à beira do descalabro.

 

Três exemplos. Ricardo Reis, em “depressão pós-férias”, socorre-se das estatísticas da emigração para, no Expresso, interpelar as mais altas figuras da nação nestes termos: “Senhores Presidente e primeiro-ministro, desculpem-me a brutalidade, mas é preciso um abano: as pessoas fogem da vossa liderança e governação ao mesmo ritmo que fugiam da Guerra Colonial”. No mesmo jornal, o seu director (João Vieira Pereira), enumerando uma série de “casos” que envolveram o Governo, lamenta-se: “(…) por muito menos do que isto Marcelo Rebelo de Sousa chumbava ministros. Hoje protege-os. Como chegámos aqui? (…) Não temos hoje um primeiro-ministro. (…) Ninguém sabe que caminho estamos a percorrer ou onde queremos estar daqui a cinco ou dez anos”. António Barreto, na sua coluna no Público, prognostica, ao estilo Guerra dos Tronos, que “vai ser um duro Inverno” (que está a chegar), e sugere uma espécie de comité de sábios (“independentes”, “gente isenta”, “técnicos competentes”, “chamar o que há de melhor em Portugal e no estrangeiro”. E interroga-se: “Não seria a altura de pedir ajuda a quem sabe para tratar daquilo para que este Governo, e outros antes dele, se mostraram incapazes?”

 

Não há nada de errado numa atitude exigente e crítica face ao desempenho da classe dirigente. Pelo contrário. É de incentivar a proliferação de propostas, análises e estudos, mesmo que corramos o riso das suas conclusões deslizarem para o déjà vu (como é o caso do livro da SEDES). O que se torna cansativo, e eventualmente contraproducente, é esta espécie de transtorno maníaco-depressivo em que os episódios depressivos parecem prevalecer, onde se vislumbra a nação como uma choldra donde apetece fugir e onde só o socorro de iluminados, estrangeiros e estrangeirados, nos pode salvar. Felizmente, com todos os seus defeitos, existe uma classe (pejorativamente apelidada de “os políticos”) que se dedica à resolução dos problemas quotidianos sem desviar o olhar do futuro. Isto enquanto uma elite com falta de comparência (quando era mais necessária) se compraz, a pretexto de uma lucidez sem par, na enumeração das insuficiências e das falhas.

 

Imagem: Rick Morais (Wikimedia Commons)

A LISTA DE COSTA

Março 27, 2022

J.J. Faria Santos

i045095.jpg

Com a pandemia submersa na corrente comunicacional, a guerra que alterou a ordem mundial foi brevemente ofuscada pela efervescência que acompanhou a divulgação do novo elenco governamental. O Presidente da República aproveitou a circunstância de este ter sido escarrapachado na comunicação social antes de lhe ter sido oficialmente apresentado para fazer um dos seus números de teatro burlesco. A simulação de desagrado institucional foi demonstrada através de uma entrevista informal e o número, de tão rotineiro e artificial, foi surpreendente, mas não relevante. No dia a seguir, paternalista e vagamente ameaçador, proclamou: “Passou. Foi registado. Agora vamos ver para o futuro.” Aposto que António Costa, longe de ter tremido das pernas, encolheu os ombros com enfado e respirou fundo.

 

Unanimemente saudado por se tratar de um executivo paritário, confesso a minha satisfação pela continuidade de Ana Mendes Godinho (competente) e Marta Temido (corajosa e assertiva), bem como de João Gomes Cravinho (bem preparado, experiente e rigoroso, tendo sido alvo da ira de Marcelo e dos chefes militares por ter ousado reformar o sector. Parece que terá sido avaro nos salamaleques, bendito seja!) As nomeações de António Costa e Silva, Elvira Fortunato e Helena Carreiras geram expectativas elevadas e Pedro Adão e Silva, aparentemente um erro de casting, pode, na minha opinião, vir a fazer um bom lugar. Claro que uma grande qualidade técnica, uma carreira profissional brilhante ou abundantes dotes políticos não garantem capacidade executiva. A prova dos nove, para os noviços, começa agora.

 

Os que ficaram de fora foram tratados nos média como se fossem concorrentes expulsos do Big Brother. O Pedro, que é amigo do PM, queria continuar, entusiasmado pela maioria absoluta, mas não se comprometia a ficar 4 anos. Nélson quis sair, mas ficou aborrecido pelo facto de o Planeamento ter sido despromovido a secretaria de Estado e não gosta que tratem António Costa e Silva como o “pai do PRR”, quando foi ele, Nélson, que elaborou e negociou o documento final com Bruxelas. E a Alexandra queria ser ministra de Justiça, razão pela qual declinou ser líder parlamentar do PS. O Público escreveu mesmo que Costa “’despediu’ o amigo e número dois, Pedro Siza Vieira, sem remorsos”. Ou seja, a comunicação social ora acusa o PM de se rodear de amigos e de não os deixar cair, ora o retrata como um líder caracterizado pela frieza e pela ausência de estados de alma. Será ingénuo imaginar que se limita a agir de acordo com o grau de oportunidade, pertinência e relevância que determinada acção tem para os superiores interesses do país?

 

Ainda o Governo não entrou em funções e as pitonisas já determinaram a falha na ambição: falta uma visão de futuro. E evocam os mantras do costume: as “reformas estruturais” que não se adivinham, o “desígnio” que não se vislumbra, a gloriosa cavalgada para a regeneração nacional que nos levaria a inverter a queda do PIB per capita e a trepar na tabela da União Europeia. Se calhar o futuro não pode esperar, mas o presente impõe-nos desafios ainda mais urgentes face a uma conjuntura altamente instável. António Costa foi reeleito com maioria absoluta, julgo, sobretudo pela sua capacidade de transmitir confiança na forma como foi capaz de lidar com circunstâncias complexas e imprevisíveis. E nada é mais imprevisto do que o futuro. A “bazuca”, se mal utilizada, pode vir a ser um mero paliativo, mas a ideia de que existe uma “bala de prata”, engendrada por uma mente iluminada, que transformará Portugal numa nação unicórnio não passa de um delírio.

 

Imagem: portugal.gov.pt

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2014
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2013
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2012
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2011
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub