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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O DISSOLVENTE

Setembro 22, 2024

J.J. Faria Santos

2022-05-19_Marcelo_Rebelo_de_Sousa_&_Francisco_Gut

Esta semana uma mudança tectónica ocorreu no complexo mediático-comunicacional de Belém: a troca de um jornal de referência por um tablóide na função de órgão de comunicação oficioso. O procedimento foi o usual: uma “fonte de Belém” jorrou ao Correio da Manhã que o Presidente convocará eleições se o Orçamento do Estado para 2025 for chumbado. É certo que a revelação, aparentemente, não proveio do próprio, mas se, digamos, um secretário de Estado é responsável pelas acções da sua secretária, o mesmo se aplica a esta situação, presumindo-se que um funcionário da Presidência não ande a divulgar informação sensível à revelia do supremo magistrado da nação. Acresce que, tendo em conta o “cadastro” de Marcelo na matéria, não é de afastar que tenha sido o próprio a promover a cacha, tornando-se irresistível rememorar as palavras que o mesmo pronunciou em Novembro de 2026: “a única fonte de Belém sou eu, é o Presidente”.

 

Marcelo estará preocupado com o efeito que a inexistência de orçamento aprovado terá no rating da República e nos pagamentos do PRR. Se a ameaça de convocar eleições é mais um recurso de alta pressão do que uma profissão de fé nas virtudes da “devolução da palavra ao povo” é o que resta para ver. O político que afirmou, na altura da demissão de Pedro Nuno Santos enquanto ministro da Infra-Estruturas, que “não podemos ter eleições todos os anos” e que o “experimentalismo não é a coisa melhor para a saúde das democracias” (citando uma conjuntura marcada por uma guerra, uma crise económica e financeira e um governo eleito há menos de um ano), é o mesmo que não muito tempo depois proclamava alegremente que “sem dramatizações, nem temores [era] preciso dar a palavra ao povo” para que do sufrágio resultasse um Governo que garantisse “estabilidade”. A única “estabilidade” discernível, tirando o facto de o orçamento ser o mesmo, é que passámos de um executivo com maioria absoluta no Parlamento para um outro que governa como se a tivesse.

 

Como impenitente homem de fé, Marcelo acreditava, há cerca de duas semanas, que iria “haver uma boa vontade grande para poupar o país a experiências de crise política”. Não sabemos se agora estará a passar por uma crise de fé, se deplora a arrogância delirante do primeiro-ministro pouco propícia à negociação ou se sente o apelo irresistível da dissolução. (Veremos que consistência terão as palavras do ministro dos Assuntos Parlamentares, invocando disponibilidade e interesse em “conversar, em negociar e em ceder onde for preciso ceder” para que o OE seja aprovado.)

 

Numa manobra enquadrável no estilo glutão de cobrir todos os ângulos (não confundir com a síndrome de cata-vento diagnosticada pelo Dr. Passos Coelho), a fonte de Belém teve mais uma aparição inesperada, desta vez no Observador (o enclave da direita radical versão elitista) para garantir que o Presidente acreditava na viabilização do Orçamento do Estado, mas não afastava a hipótese de eleições antecipadas.

 

Em Abril deste ano, Marcelo explicou que a dissolução "era um sonho antigo da direita portuguesa, desde 2016, mas só se concretizou porque houve essas duas ocasiões que se somaram: um processo que ninguém esperava nem imaginava e a demissão de primeiro-ministro e secretário-geral do PS". As “ocasiões” fizeram a demissão, mas falta uma nesta análise e essa “ocasião” oculta é evidente: um Presidente demasiado empolgado em evocar o seu poder de usar a “bomba atómica” e com tiques de trigger-happy. Dá-se o caso feliz de a arma no arsenal do Dissolvente ser política e não militar.

CONSELHO DE ESTADO INTERRUPTUS

Julho 22, 2023

J.J. Faria Santos

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“É um Conselho de Estado para chatear o Governo”, declarou ao Expresso, em off, um conselheiro. Com este ponto único na ordem dos trabalhos, o Conselho de Estado convocado por um Presidente quiçá aditivado com fortimel não ofereceu conclusão robusta nem debate viril. Ao que parece, o primeiro-ministro teve de sair mais cedo para apanhar o avião para a Nova Zelândia e não fez qualquer intervenção, o que terá levado a que o Presidente prescindisse de falar no final da reunião. Marcelo terá sugerido que o debate prossiga em Setembro, razão pela qual é legítimo pressupor estarmos, formalmente, perante um Conselho de Estado interruptus.

 

Devo advertir os críticos da forma torrencial como Marcelo dispõe do uso da palavra que não se poderá depreender que, a partir de agora, sempre que o PM se abstiver de falar, o PR seguirá o exemplo. A política tem horror ao vazio e o vazio tem horror a Marcelo, e este ainda não descobriu outra forma de destilar o seu veneno em doses não letais senão através do seu prolixo verbo. E ainda bem. Doutra forma, veríamos em breve a imprensa de referência a clamar que Costa calara Marcelo.

 

Consta que a vedeta da reunião foi o barão do Norte Miguel Cadilhe, que esteve cerca de uma hora a demonstrar como os números positivos da economia podem ser enganadores. Seria de esperar que o douto economista não precisasse de tanto tempo para denunciar o ludíbrio, mas, enfim, nem toda a gente tem o talento para a síntese e a clareza do comentador “independente”- conselheiro Marques Mendes.

 

O Conselho de Estado interrompido não é um método aconselhável para o controlo da conflitualidade institucional. Mas também não é esse o objectivo da vigilância reforçada do Presidente ao que já chamou de “maioria requentada” (num exemplo de “elegância” discursiva). Marcelo deseja que a conjugação do descontentamento popular com a afirmação da oposição lhe possibilite a convocação de eleições antecipadas no rescaldo das eleições europeias. Se não é certo que as duas condições se verifiquem, um outra Costa, Ricardo Costa, aponta no Expresso um argumento que estraga o cenário: “A fé nas europeias não passa de uma candeia que tremeluz em 2024. Uma maioria absoluta não cai em eleições com abstenção de 69% de eleitores.”

 

Imagem: Miguel A. Lopes/Lusa

PENSÕES: DO CORTE VIRTUAL AO EXTRA REAL

Abril 23, 2023

J.J. Faria Santos

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O problema dos cenários, da construção de um argumentário com base na previsibilidade, e da sua utilização como combustível para a indignação jornalística e político-partidária (com alusões a “truques” e “cortes”) é que não deixam de ser realidade virtual, ou seja, em si mesmo um verdadeiro truque. Menos jornalismo performativo, menos histeria comunicacional, maior apego aos factos e menor ênfase na opinião dependente da precognição, eis o que se aconselha.

 

Quando, em Outubro de 2022, o Governo atribuiu uma entrega extraordinária correspondente a meia pensão e depois, em Janeiro de 2023, aumentou os pensionistas entre 3,89% e 4,83%, ficou assente que fora aplicada para os dois anos em causa a fórmula de actualização prevista na Lei 53-B/2006. Agora, no já não tão cruel mês de Abril, com o anúncio de um aumento intercalar de 3,57%, pago a partir de Julho, o primeiro-ministro garante não só que a fórmula será aplicada em 2024, como também assegura que, num contexto altamente inflacionário, os pensionistas chegarão a 2024 com ganhos reais de 2% (dados do Expresso).

 

Em poucos meses passámos de um “corte” nas pensões para uma situação em que os seus beneficiários acabam por ganhar um valor extra correspondente a meia pensão. A célebre declaração de António Costa em Junho de 2022, prevendo um “aumento histórico das pensões” em 2023 e o cumprimento da fórmula acaba por corresponder à verdade dos factos. Pode-se agora arguir que o Governo “emendou a mão”, mas há que admitir que este nunca pôs de parte o cumprimento estrito da lei, antes adiando a decisão para uma altura em que dispusesse de melhores indicadores.

 

Num artigo do Público de Setembro de 2022, a jornalista Raquel Martins notava que “em quinze anos de vida, a fórmula de actualização das pensões, que começou a ser aplicada em 2008 (…) só funcionou efectivamente em 2008, 2009 e 2016. No resto do tempo, esteve suspensa ou então foi complementada com aumentos extraordinários, para compensar os pensionistas com rendimentos mais baixos.”  12 anos de “truques”, portanto, uns mais agradáveis (porque representaram um acréscimo face ao disposto na lei), outros mais dolorosos (entre 2011 e 2015, a lei esteve suspensa, o que representou um “corte” no valor recebido e não apenas uma diminuição num aumento esperado).

 

É legítimo que se questionem as motivações que levaram a que se mantenha inalterado um mecanismo de actualização das pensões que o próprio autor (Vieira da Silva) admite poder ser necessário alterar e o actual secretário de Estado da Segurança Social admitia modular no sentido de torná-lo “menos sensível aos picos de inflação”. Do mesmo modo, julgo admissível encarar com algum cepticismo melhorias conjunturais na sustentabilidade da Segurança Social que podem não corresponder a tendências de longo prazo. O que não se deve é desvalorizar o facto de o Governo ter considerado que, nas circunstâncias actuais, possui condições para reforçar o rendimento de reformados, à semelhança do que fez com indivíduos e agregados mais vulneráveis. Ouvido pelo jornal Expresso, o economista Ricardo Cabral, que não põe de parte “a possibilidade de um excedente” orçamental em 2023, questionou-se: “se há condições financeiras para melhorar a vida das famílias, para quê adoptar uma política orçamental restritiva?” 

 

Cabral considera que o “Governo também pensou na possibilidade de eleições antecipadas”. Admitindo que houve aqui uma motivação adicional de ordem política, tal facto não deixa de ser irónico. É que se há alguém que introduziu na agenda mediática o tema da dissolução do Parlamento e das eleições antecipadas, com pronunciamentos em catadupa, esse alguém não foi António Costa. António Barreto, insuspeito de simpatias pela maioria governamental, escreveu no Público de ontem um parágrafo demolidor para o inquilino de Belém: “São sinistras as ideias que sugerem que o Presidente deve seguir as sondagens da semana e deve saber se os seus favoritos estão bem colocados para ir a eleições.”

O SENTIDO DO FIM (DA LEGISLATURA)

Fevereiro 26, 2023

J.J. Faria Santos

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A síntese estava estampada na primeira página do Público: “Portugueses dão negativa ao Governo, mas querem que fique até ao fim”.  53%  acham que o Governo é mau ou muito mau, mas 70% consideram que “é melhor para o país” que ele cumpra o mandato. Passada a perplexidade inicial (serão os portugueses masoquistas? Irresponsáveis? Inconsequentes?), eis que os politólogos se apressaram a adiantar duas explicações, que podem ser exclusivas ou cumulativas: a preferência pela estabilidade política e a falta de uma alternativa credível.

 

A própria sondagem do Cesop indicia que Luís Montenegro é apenas menos mau do que Rui Rio. A oposição em geral, porventura espicaçada pelo rol de casos que assolou o executivo, uns reais, outros mais ou menos artificiais, tem optado por carregar nas tintas e desafiar o delírio. Montenegro achar que Costa está a exibir a sua “faceta de comunista” ou Rui Rocha a denunciar o “gonçalvismo” e a “agressão insustentável à propriedade privada” são exemplos de reacções desproporcionadas que retiram credibilidade aos seus autores no eleitorado central que decide eleições.

 

Por outro lado, parece evidente que após sete anos de poder, marcados por uma pandemia, pelo regresso da guerra à Europa e pelo retorno da inflação, a circunstância da existência de uma maioria absoluta revelou cidadãos mais exigentes, como se tivessem acabado os álibis para a persistência dos problemas crónicos da vida portuguesa. Daí o crescendo de reivindicação e o multiplicar das acções de protesto, podendo extrapolar-se que os portugueses, para além das razões relacionadas com a sua situação pessoal, se possam sentir mais livres para protestar, conscientes de que esse facto não porá em causa a estabilidade política.

 

A figura-chave do jogo político português continua a ser António Costa. Nunca suscitou grandes paixões, embora concite ódios colossais. Reúne a seu favor a experiência, a inteligência, a frieza e o sentido táctico, e transmite uma segurança assente no bom senso e na moderação. E contrariamente ao chavão, não é desprovido de sentido estratégico ou visão de futuro, simplesmente tem um sentido agudo da política como arte do possível. É por isso que com um empate técnico no tempo regulamentar, ele acaba por ganhar nos descontos ou no prolongamento. Até um dia, claro. Mas isso, para recorrer a outro chavão, será a democracia a funcionar. Um Governo pode e deve ser avaliado regularmente, mas só deve verdadeiramente ser julgado no final da legislatura. E, para isso, tem de cumpri-la.

ENQUANTO A CIDADE DORME

Dezembro 29, 2022

J.J. Faria Santos

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Enquanto a cidade dorme, o Governo desmembra-se. Pela calada da noite, quando todos os gatos são pardos e as hienas se agitam nas sombras, anunciam-se demissões, afiam-se punhais e armam-se ciladas. Inimigos cordiais avaliam cenários, sopesam argumentos, apagam rastos, observam com apreensão o comércio da informação. E os adversários, em reagrupamento ou reestruturação, como tubarões inebriados pelo sangue que goteja, confundem (ou fingem que confundem) os seus desejos com o interesse nacional, acenam com o irregular funcionamento das instituições e decretam o caos irremediável.

 

Afastado o activo tóxico, a harpia gananciosa que calçava Louboutin, eis que se segue o processo de desminagem em curso, causando danos colaterais de vulto. O Governo, cujo primeiro-ministro se exibiu em entrevista em pose régia e discurso envolto em húbris, parece empenhado em bater o recorde nacional de demissões. Verdadeiramente grave, porém, é a sensação de inércia, que nem sequer pode aspirar a ser confundida com calculismo. Já tarda que António Costa reclame para si as rédeas. Cavalo à solta pode adequar-se à poesia, mas é letal para a administração do poder. Estranha-se que quem resistiu a uma pandemia, suportou os estilhaços de uma guerra e enfrentou o regresso da inflação possa sucumbir à modorra depois de ter alcançado a sua vitória política mais substantiva.

 

Enquanto a cidade dorme, e o primeiro-ministro se vê impelido a planear a regeneração, eis que o impetuoso André e o nobre falido Nuno reclamam eleições antecipadas. Mas o gongórico Rangel já veio garantir que o PSD exibe uma “postura de sentido de Estado” e que “o país não pode andar de eleições em eleições”. E do alto do seu púlpito, os comentadores indignados, entalados entre as suas convicções íntimas, o brio profissional e os imperativos do share, clamam: “Onde é que anda Luís Montenegro?”

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