“Fala-se muito no cansaço e houve muitos heróis entre os trabalhadores da saúde (…), mas eu poderia dizer que aí 75% ou 80% dos trabalhadores da saúde teve um grande período de férias nestes últimos 3 ou 4 meses.” (Jornal da Tarde, RTP, 22/07/2020) A frase iconoclasta do cardiologista Manuel Antunes, contra a corrente laudatória dos profissionais da saúde, não pretende, obviamente, desvalorizar quem esteve na chamada linha da frente do combate à epidemia, propondo antes uma leitura matizada, atendendo às circunstâncias do desempenho clínico de cada um deles. Claro que uma frase destes, se fosse proferida por um governante ou por um dirigente partidário, teria dado origem a uma quase sentença de morte política ou a um auto-de-fé nas redes sociais…
“Uma pessoa que é portadora do vírus [da covid-19] pode ser comparada a um bombista, porque, neste caso sem querer ou saber, pode infectar 100, 200 ou 300 pessoas. (…) Discutir a constitucionalidade é, neste caso, um absurdo.” (in Público de 8/08/2020) Para Miguel Albuquerque, portanto, uma matéria que põe em conflito valores fundamentais como a liberdade e a segurança não tem dignidade constitucional. Como ele próprio confessou, “sou uma pessoa afectiva, mas sou muito pragmático”, pelo que só faltou admitir que perante um bombista acidental ao serviço involuntário do coronavírus, nada como a eficácia do waterboarding. Assim como assim, as gotículas epidémicas acabavam dissolvidas no caudal da água. Dois propósitos eram alcançados: reprimir o bombista e conter a disseminação do vírus.
“Não nego nenhuma das divergências que tive com ele [Pedro Passos Coelho], em muitas áreas, mas acho francamente que o país lhe deve alguma coisa.” (in Público de 26/07/2020) A frase de Francisco Assis parece mais um reconhecimento institucional a quem exerceu um cargo público do que um elogio, que de rasgado nada tem. Na verdade, até parece bastante avarento. “Alguma coisa” é uma medida que, com toda a probabilidade, só terá entusiasmado a entrevistadora (Maria João Avillez) e o responsável pela manchete do dia. Se se acrescentar que o próprio Assis afirmou que tinha “expectativas muito baixas” acerca do desempenho dele como primeiro-ministro, percebe-se que o “exercício intelectual interessante” (como ele caracterizou o olhar sobre a governação de Passos) tenha resultado numa síntese ao mesmo tempo titilante e inócua.
“Depois do manifesto inquisitório, os pezinhos de lã do Governo disfarçam as botifarras da censura. (…) Estes senhores não querem apenas combater o que entendem ser o fascismo, o racismo e o populismo. Querem também destruir a democracia plural, a liberdade de expressão e o livre pensamento.” (in Público de 19/07/2020) Os pretextos para o tonitruante artigo de António Barreto foram um manifesto subscrito por académicos condenando o que designavam como o “branqueamento” do Chega efectuado por Riccardo Marchi e a intenção de Governo de monitorizar o discurso do ódio na Internet. A politóloga Marina Costa Lobo leu o trabalho de Marchi e concluiu que “não se trata de um estudo de ciência política nem de história (…), não cumpre critérios mínimos de distanciamento do objecto de estudo, (…) não tem um enquadramento analítico, nem teórico”, notando a escassez de fontes de investigação e reduzindo a obra a um “panfleto partidário” (artigo no Público em 11 de Agosto). No mínimo, devemos considerar que os autores do manifesto (mesmo que se tenham cingido a declarações de Marchi, sem terem lido a sua obra) tiveram pelo menos o discernimento de apontar falhas na metodologia e enviesamento nas conclusões. Por outro lado, mesmo sem sabermos como se tem materializado a intenção governamental de acompanhar o discurso de ódio online, tendo em conta a visibilidade das acções do Chega ( e a sua performance nas sondagens), bem como a acção de organizações que não se eximem à emissão de ultimatos e ameaças, parece-me que faltaria firmeza às “botifarras”. Em suma, sendo sempre de saudar o discurso vigilante da liberdade, talvez fosse de introduzir algum gradualismo na retórica e ponderação na análise. Doutra forma, corre-se o risco de perpetuar a história de Pedro e o Lobo, com o seu histórico de falsos alarmes e o risco da descrença quando a ameaça real aparecer.
“Se o Chega evoluir de uma tal maneira que – embora seja um partido marcadamente de direita, em muitos casos de extrema-direita, muito longe de nós que estamos ao centro -, se o Chega evoluir para uma posição mais moderada, eu penso que as coisas se podem entender.” (in RTP3, 29 de Julho) O homem que recentrou o PSD estende os braços ao extremismo apelando à sua moderação? Ingenuidade, inconsciência ou puro pragmatismo eleitoral? O que motiva Rui Rio só pode ser a intenção de voto que o Chega obtém nas sondagens. E talvez a natureza antissistema do partido de Ventura o fascine um pouco… Como escreveu Pedro Adão e Silva no Expresso, “no fim, não será o Chega que se vai moderar, é a direita moderada portuguesa que acabará por se radicalizar”. Nessa altura, presumo, os cultores do espírito do bloco central e os apologistas das virtualidades da moderação rasgarão as vestes perante uma geringonça de sinal contrário.
“A minha preocupação não tem sido apurar as responsabilidades dos surtos [nos lares]. (…) Tem sido criar instrumentos de reforço para apoio às instituições e acompanhá-las.” (In Expresso de 15/08/2020) As duas frases da ministra Ana Mendes Godinho constam da mesma resposta, mas só a primeira deu direito a manchete. Podem ser interpretadas como uma forma de priorizar o apoio às instituições e só depois averiguar as circunstâncias que rodearam o surgimento e a evolução dos surtos, ou como uma manobra de desresponsabilização, ou ainda como sintoma de incapacidade de avaliação política. Na verdade, porém, em meados de Julho, a ministra já tinha pedido à Segurança Social uma avaliação ao lar de Reguengos e remetido as conclusões ao Ministério Público. A ministra foi também acusada de insensibilidade por ter dito que só foram atingidos “3% do total dos lares e 0,5% dos utentes”. A ideia feita é que em S. Bento mora a insensibilidade e em Belém reside a compaixão. Mas o grande pecado de Ana Mendes Godinho, creio, foi ter dito que não leu “pessoalmente” o relatório da Ordem dos Médicos, embora tenha esclarecido que tinha pedido que o “analisassem”. O crime de lesa-majestade foi não ter lido sofregamente e de imediato o documento oriundo de uma ordem cujo bastonário tem uma presença tão abundante nos ecrãs das televisões. As más-línguas diriam até que mais que a própria ministra da Saúde. As mesmas más-línguas que até são capazes de sugerir que se delegue os poderes da Inspecção-Geral do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social na Ordem dos Médicos…
Imagem: "The Coming Storm" de Michele Del Campo