Estará Passos Coelho contra a “educação para o empreendedorismo”? Que objecções terá Cavaco Silva ao ensino da “literacia financeira e da educação para o consumo”? Não vislumbrará Isabel Jonet mérito na “promoção do voluntariado”? E D. Manuel Clemente não verá reflectido o seu espírito ecuménico na educação intercultural onde se visa “desenvolver a capacidade de comunicar e incentivar a interacção social, criadora de identidades e de sentido de pertença comum à humanidade”? Todas estas matérias e outras (direitos humanos, igualdade de género, educação ambiental…) integram o currículo da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, envolta numa guerra de manifestos, espoletada pela circunstância de dois irmãos, por opção dos pais, terem faltado a todas as aulas.
As personalidades acima mencionadas juntaram-se em nome da “defesa das liberdades de educação” e do respeito pela “objecção de consciência de mães e pais” quanto à frequência da dita disciplina. As motivações dos signatários e dos que se pronunciaram no sentido da concordância com o conteúdo deste manifesto variam. José Miguel Júdice não diz se “o conteúdo é correcto ou errado”, discorda é que não haja “alternativa”. Acha que a objecção de consciência deve ser protegida e estabelece um paralelo com o serviço militar (?). Henrique Monteiro acha que que “o caso é sobre a igualdade de género” e que o “programa está cheio de ideologia”. Já para Sérgio Sousa Pinto, “podem ocorrer casos de proselitismo e endoutrinação, mas na maior parte dos casos, é a nulidade da coisa que nos deve interpelar.”
Ignoremos, por momentos, a duvidosa invocação da objecção de consciência por procuração e o aroma inconfundível a guerra cultural. Relevemos a forma distorcida como a posição assumida pelo Ministério da Educação foi veiculada, bem como a extravagante pretensão dos pais a uma espécie de droit de regard (como explicou José Ribeiro e Castro em artigo no Público, “estes pais nem recusaram por inteiro a frequência da disciplina; exigiram ser informados previamente da matéria das aulas, a fim de decidirem em concreto”), que obrigaria a uma absurda negociação à la carte acerca dos conteúdos passíveis de serem ensinados. Estando em causa um encarregado de educação, cristão católico, “talvez conservador”, nas suas próprias palavras, casado com uma cientista que, segundo o jornal Público, “renunciou à investigação para se dedicar à educação dos filhos”, não posso deixar de me interrogar se a animosidade perante a disciplina em causa não se deverá ao facto de ela incluir matérias como a igualdade de género (“promoção da igualdade de direitos e deveres das alunas e dos alunos, através de uma educação livre de preconceitos e de estereótipos de género”) e a educação para a saúde e a sexualidade (“A escola deve providenciar informações rigorosas relacionadas com a proteção da saúde e a prevenção do risco, nomeadamente na área da sexualidade, da violência, do comportamento alimentar, do consumo de substâncias, do sedentarismo e dos acidentes em contexto escolar e doméstico” – in Educação para a Cidadania – linhas orientadoras).
Desconfio que o que está aqui fundamentalmente em causa é a educação para a sexualidade. Uma espécie de síndrome Diácono Remédios. Artur Mesquita Guimarães, o pai das crianças, declarou ao Público: “Entendo que a educação sexual é uma competência dos pais e ainda que seja uma disciplina curricular tem de ser considerada a objecção de consciência para aqueles pais que entendam que os filhos não devem participar.” Não é difícil perceber que para indivíduos com um perfil “talvez conservador”, qualquer abordagem à sexualidade que escape ao seu controlo, mesmo sob o prisma da saúde reprodutiva e da prevenção do risco, pode ser um passaporte para a libertinagem. Nos seus piores pesadelos, até pode ser que imaginem um filho a chegar um dia a casa da escola e a proclamar impante que quando for maior que ser transsexual… O que verdadeiramente me espanta é o receio que estes pais têm de que a escola produza um curto-circuito na relação deles com os filhos, de forma que se sentem na obrigação de bloquear a informação da aula. Como se a educação que entendem providenciar aos seus descendentes não tolere o confronto, fortuito ou sistemático, com outros entendimentos ou perspectivas. Sentir-se-ão desprovidos de capacidade de esclarecimento e persuasão, ou contentar-se-ão com a imposição do seu ponto de vista guiados pela omnipotência dos seus papéis de progenitores (“é assim porque sim, porque eu digo”)?
Eduardo Marçal Grilo e Guilherme d’Oliveira Martins (dois perigosos discípulos do marxismo cultural e praticantes do proselitismo e de métodos inquisitoriais, evidentemente…) escreveram no Expresso que “admitir explicitamente que se possa invocar a objecção de consciência numa disciplina de currículo é abrir a porta a que se invoque o mesmo direito em qualquer outra disciplina como a Biologia, a Geografia ou mesmo a História ou a Sociologia”. Outras figuras deram exemplos das consequências deste precedente: pais com uma visão religiosamente dogmática poderiam recusar o ensino do evolucionismo; negacionistas do Holocausto poderiam impedir que os seus filhos assistissem a uma aula de História.
Richard Zimler, um dos subscritores do manifesto a favor da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento (juntamente com figuras como Teresa Pizarro Beleza, Ana Gomes, Marina Costa Lobo e Daniel Oliveira) afirmou: "Tenho muito medo de jovens incultos, mas não tenho medo de jovens instruídos". É caso para dizer: quem terá medo da disciplina que, conforme consta das suas linhas orientadoras, “visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autónomas, solidárias, que conhecem e exercem os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo”? Há quem escolha os dogmas e a auto-suficiência e viva enclausurado no seu casulo de superioridade moral. Quem tem medo dos jovens instruídos?
Ilustração: cidadania.dge.mec.pt