O FALSO ÓNUS ÉTICO
Fevereiro 11, 2024
J.J. Faria Santos
Para a generalidade dos comentadores, a vitória do PSD nas eleições regionais dos Açores teve o efeito de transferir para o PS o ónus ético da contenção do Chega. Um voto contra o Governo minoritário de Bolieiro significaria empurrá-lo para o colo do Chega. Mas se um compromisso moral unilateral é o pináculo, na acção política, a arte do compromisso por excelência, é aconselhável que se opte pela ética da reciprocidade, se mais não fosse por uma questão de coerência e boa-fé. Bolieiro já recorreu ao colo do Chega quando se socorreu de um acordo de incidência parlamentar com este partido para se apresentar como alternativa a uma força política que ganhou as eleições em 2020. Não tem moral, agora, para exigir que o resgatem da ameaça da extrema-direita que já acolheu porque lhe foi conveniente. Como, aparentemente, André Ventura deixou cair a exigência de integrar o executivo açoriano, mesmo tendo em conta a autonomia insular, é credível que Bolieiro possa reeditar o acordo da legislatura anterior, agora numa posição reforçada com a vitória nas eleições. Nada de novo, portanto.De resto, como defendeu Pacheco Pereira em artigo no Público, se o objectivo do PSD era obter a abstenção do PS deveria negociar com este um “acordo mínimo que garanta uma qualquer estabilidade à governação”. Porquê? Porque “para existir seriedade política, não basta empossar um governo que depois fique nas mãos do Chega para a governação quotidiana”.
Se, à direita, há quem pretenda alistar o PS para afastar o partido de Ventura do poder, também há quem celebre o fim das chamadas “linhas vermelhas”. O argumento principal é o de que com a divisão do espectro político em dois blocos os extremos de ambos os pólos ficaram legitimados, doutra forma ficaria em risco a alternância democrática. O problema essencial desta linha de raciocínio é que parte de uma falsa equivalência entre os extremos. Não há equivalente à esquerda ao discurso racista, xenófobo e misógino do Chega. Ninguém como este partido ataca a imigração, faz cercos a sedes de partidos ou transforma a sua actividade parlamentar numa discussão de taberna entre o bullying e a grosseria. Ninguém como este partido recorre, alegando depois inocência, a gestos e comportamentos associados a regimes fascistas e ditatoriais. Nenhum recorre de forma sistemática à demagogia despudorada e à mentira compulsiva. Nenhum como este constitui um risco evidente para a democracia. É um problema para a direita? Claro que sim, menos, presumo, para aquela que com ele aceita partilhar poder ou influência.
Mas também é um problema para a esquerda. Não só porque acarreta um efeito de radicalização da direita democrática como também tem mostrado capacidade de penetração no eleitorado tradicional daquela. Entrevistado pelo jornal Setenta e Quatro, o jornalista Miguel Carvalho declarou: “O Chega está muito bem representado em todas as escalas da sociedade e nos diversos sectores laborais. Encontrei gente que teve um percurso político à esquerda — inclusivamente candidatos autárquicos do BE e do PCP — e até sindical, em alguns casos na CGTP. Só assim seria possível o partido crescer. De facto, com a sua narrativa, o Chega abraçou todos os setores, em todo o território nacional, que se sentem representados não por tudo o que o Chega defende, mas pelo menos por uma parte.” Os deserdados do regime apostam na capacidade disruptiva do Chega na ilusão de verem mediatizados os seus agravos, num impulso contestatário que, mesmo que direccionado para os alvos errados ou cavalgando argumentos falsos, lhes dêem esperança de verem reconhecidos os seus agravos.
Em época de Carnaval, de acentuado jogo de máscaras, convém ter cautela para que os aparentes gestos grandiosos não tenham como resultado a entrega a forças antidemocráticas do monopólio da mobilização do protesto e da corporização da alternativa.