OS SOUSAS - OS PRINCÍPIOS, A IDEOLOGIA E A REALPOLITIK
Março 13, 2022
J.J. Faria Santos
Zelensky, escreveu no Expresso Miguel Sousa Tavares (MST), devia ter negociado com Putin. “Porque não o fez para evitar a invasão do seu país e não ter de assistir a tantos mortos, tanta destruição, tantas famílias em fuga?”, acrescentou. Mas, pergunto eu, MST acha que a intenção de Putin foi sempre a de invadir a Ucrânia? É que o líder russo, quando confrontado com notícias de uma invasão iminente, qualificou-as sempre de histeria e propaganda ocidental, e que a movimentação de tropas era exercício de rotina. Que credibilidade pode merecer a palavra negocial de quem mente tão descaradamente? “A coragem está na paz”, escreve MST. A que preço? Deve uma nação independente claudicar perante os caprichos do seu vizinho todo-poderoso, prescindir de parte do seu território, limitar as suas opções de cooperação internacional, porque se vê confrontado com a ameaça da força militar bruta e com os métodos sem escrúpulos de um autocrata? Então agora troca-se a soberania e a liberdade de acção e pensamento pela “coragem da paz” diante do imperialista Vladimir (a ironia de um adjectivo aplicado a Putin numa altura em que até o PCP alude à “Rússia capitalista” )? Citando Nuno Severiano Teixeira (Público): “com ditadores e autocratas, o ‘apaziguamento’ não vale a pena. Pode adiar, mas nunca evita a guerra.”
Às vezes, a busca da nuance perdida, a necessidade de conferir uma suposta sofisticação à análise e a ambição de conferir validade a todos os pontos de vista, em vez de resultar num suplemento de lucidez, limita-se a reproduzir um quadro mental assente em pressupostos ideológicos imutáveis. Do artigo de Boaventura Sousa Santos (BSS) no Público (Para uma autocrítica da Europa), é possível retirar as seguintes conclusões: que “esta guerra estava a ser preparada há muito tempo tanto pela Rússia como pelos EUA”, que a Rússia foi “provocada a expandir-se" pelo alargamento da NATO e que o propósito dos americanos é “manter o mundo em guerra e criar maior dependência dos fornecimentos norte-americanos, sobretudo de armas”. Portanto, para BSS, a culpa pela eclosão da guerra é dos americanos (que a desejaram) e dos líderes europeus, incapazes de manter a paz. A teoria geral da culpa ocidental entronca, claro, na “humilhação” que se teria seguido ao desmembramento da URSS. É difícil aceitar a tese da humilhação, tendo em conta o esforço do Ocidente para a integração da Rússia no concerto das nações. Se países do mesmo sistema político decidiram abandonar a órbita russa, a culpa será menos da atracção pelo Sol ocidental e mais da fuga da escuridão soviética. E a “humilhação” foi tanta que o líder russo, na tentativa de resgatar a grandeza (Make Russia Great Again), foi sucessivamente ocupando ou anexando parcelas do antigo império perante a complacência dos senhores da guerra americanos e das pombas europeias. A culpa da guerra da Ucrânia, para BSS, não é do agressor. É dos EUA e da Europa, da NATO e das “lideranças medíocres” europeias. É como se, para a paz no mundo, a democracia ocidental fosse uma ameaça infinitamente superior à da “nostalgia imperial” do wannabe Czar.
Imagem: BSS (visao.sapo.pt) / MST (mag.sapo.pt)