DIVAGAÇÕES ESTIVAIS SOBRE TUDO E SOBRE NADA
Agosto 04, 2024
J.J. Faria Santos
Shannen Doherty morreu no dia 13 do mês passado aos 53 anos. A Time chamou-lhe “a rapariga quintessencial da geração X”. E escreveu que a personagem que ela interpretava na série Beverly Hills 90210, Brenda Walsh, era uma “mistura volátil de angústia da geração X, fragilidade juvenil e perseverança feminista”.
A série passou em Portugal entre 1992 e 1997, com a sua mistura de glamour endinheirado, drama geracional, beleza juvenil e apelo à rebeldia mitigada. Eu, que nunca me impressiono com a riqueza e o poder (ao contrário do que sucede com a beleza e a inteligência – e a conjugação destas duas mais do que impressionado, deixa-me subjugado), desdenhei da ostentação material e concentrei-me na riqueza emocional da Brenda e na rebeldia do Dylan McKay que o Luke Perry interpretava com ares de James Dean.
O problema era que, comparada com a série que tanto me impressionara em 1991/1992, Beverly Hills 90210 era um amuse-bouche desenxabido. Twin Peaks, a pièce de résistance, cuja acção se desenrolava numa pequena cidade, continha para além de drama, beleza juvenil e rebeldia, um suplemento de mistério e transgressão que mergulhava sem concessões no surrealismo. Sherilyn Fenn (Audrey) e Lara Flynn Boyle (Donna) preenchiam com inegável talento a quota das sedutoras de serviço e James Marshall (James) arvorava aquele ar de desobediência e fragilidade do rebelde com todas as causas disposto a arcar com todas as consequências. No meio deste ambiente luxuriante, estimulante de sensações e sentimentos, quem é que quer saber da frivolidade dos automóveis descapotáveis, das roupas de marca ou das festas da alta- roda?
Não ignoro a importância dos bens materiais para a sobrevivência, para o conforto e para a satisfação daquelas necessidades que na minha família, há gerações, se designam por “extravagâncias”. E calha bem que uma “extravagância” tanto possa ser um capricho como algo fora de comum. Simplesmente, não tenho nem talento, nem vontade, nem perseverança para acumular riqueza. Há duas décadas, o meu desejo se ganhasse um bónus financeiro inesperado era gastar tudo numa visita a uma livraria. Agora, nem isso. O simples facto de ter 3 ou 4 livros em lista de espera causa-me uma mistura de ansiedade e gulodice.
É até possível que este meu desprendimento tenha alguma coisa a ver com aquilo que Douglas Coupland no seu livro Geração X denomina de “menorismo: filosofia que permite que uma pessoa se reconcilie com a diminuição de esperanças de riqueza material”, dando o exemplo de alguém que deixou de querer ser importante e só quer encontrar a felicidade. O que seguramente posso fazer é confessar a minha simpatia por um outro conceito expresso por Coupland no livro citado, concretamente o de “substituto de estatuto”, que consiste em “usar um objecto cotado intelectualmente ou na moda em substituição de um outro que é apenas caro”. O exemplo dado é este: “Brian, deixaste o teu Camus no BMW do teu irmão”.
A ficção de Twin Peaks começava com a descoberta do corpo de Laura Palmer. A vida real da Brenda de Beverly Hills 90210 terminou com a rendição involuntária à eufemística “doença prolongada”. Douglas Coupland escreveu que “ou as nossas vidas têm história, ou não há maneiras de as levarmos a cabo”, mas não é de descartar que as vidas modernas sejam um pouco como aquelas ficções com enredo inexistente ou difuso. Dito de outro modo: a vida moderna não é um romance, é um livro de contos. E a felicidade, claro, é uma intermitência.