Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O BANQUEIRO MORALISTA E O JANTAR DE SEXTA-FEIRA À NOITE

Fevereiro 05, 2023

J.J. Faria Santos

SANT_pres.jpeg

Portugal num parágrafo segundo o presidente do Santander: “demonizamos” quem tem bons salários ou lucros; a “revolução já lá vai”; entre o que a DECO diz e a realidade há uma “enorme assimetria”, porque o aumento das prestações do crédito à habitação só afecta as classes média e média alta, que podem passar por dificuldades, “mas não passam fome”; e assistimos a “padrões de consumo elevados”, com as pessoas a “jantarem fora à sexta-feira à noite”, graças às políticas públicas que distribuem subsídios que têm impacto no aumento da inflação.

 

Se nos debruçamos sobre a neurociência da pobreza, talvez seja altura de nos dedicarmos ao estudo da pobreza de espírito das proclamações dos afluentes que peroram sobre os destituídos ou os menos abastados. Para além de fazerem retratos a traço bastante grosso da conjuntura económica e de alinhavarem considerandos acerca da psique da nação, não resistem a teorizar acerca da nossa capacidade de resistência (“ai, aguentam, aguentam!”) e, sobretudo acerca das nossas refeições, ora limitando o menu (não podemos comer bife todos os dias) ora censurando a opção de recorrer ao restaurante.

 

Há, evidentemente, neste estilo de considerações um paternalismo e uma desfaçatez ofensiva e revoltante. Como se do alto dos seus cargos, e das suas supostas impressionantes qualificações, e apesar de “a revolução” já ser passado, eles assumissem o cargo de grandes educadores do povo. Os banqueiros são uma casta privilegiada e a banca um sector à parte, cujo ás de trunfo é a conveniente invocação do misterioso risco sistémico. Talvez por isso, num país em que a média da zona euro é o benchmark, ninguém se incomode com o facto da remuneração dos depósitos a prazo em Portugal ter sido a mais baixa dos 19 países que compunham a zona euro em 2022. A taxa média em Dezembro, segundo dados do jornal Público, foi de “0,35%, muito longe dos 2,29% da França, dos 2,09 % da Itália, ou mesmo da média de 1,44% da zona euro”.

 

Sexta-feira é, curiosamente, o título de um tema de Boss AC, onde se canta: "Não tenho condições nem p’a alugar uma tenda / Os bancos só emprestam a quem não precisa   / A mim nem me emprestam p’a mudar de camisa / Vou jogar Euromilhões a ver se acaba o enguiço / Hoje é sexta-feira, vou já tratar disso.”  Não se recomenda. Lá viria o ilustre banqueiro perorar contra o vício do jogo, alimentado pelo subsídio, quiçá. E como quem não tem dinheiro não tem vícios, a solução seria apertar mais o crédito, o qual, na linguagem horeca de Pedro Castro e Almeida, não pode ser uma espécie de “bar aberto”. Devidamente contextualizada, esta afirmação é a versão relativamente sofisticada do conselho da senhora piedosa que dá a esmola ao pobre e recomenda que não gaste o dinheiro em álcool. Porque, como se sabe, para os bem instalados na vida, a miséria é, sobretudo, moral.

 

Entretanto, a história foi reescrita. O banqueiro estará, segundo o Polígrafo, a ser vítima da “manipulação clara” do seu discurso. Ter-se-á referido à classe média e média alta e sido vítima da fúria cega das redes sociais e do oportunismo político. Mas não tem Portugal uma classe média empobrecida, com o poder de compra em erosão? E o acto de jantar fora à sexta-feira à noite é um indicador de robustez financeiro? E um banqueiro de perfil liberal devia tecer considerações levianas acerca da forma como um cidadão gere o seu orçamento familiar, sem conhecer todas as circunstâncias do seu estilo de vida?

 

Imagem: Tiago Miranda (expresso.pt)

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2014
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2013
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2012
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2011
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub