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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

O ESCORPIÃO (MARCELO A.C.)

Setembro 05, 2021

J.J. Faria Santos

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Traição, golpe baixo, veneno, escorpião: palavras nos últimos dias associadas a Marcelo Rebelo de Sousa, a propósito das memórias de uma figura pública. Não são as memórias de Adriano, trata-se das memórias de Balsemão; não são histórias de mil e uma noites, são episódios de uma vida em mil páginas. Subitamente, vimo-nos transportados para uma época aparentemente longínqua, algures num tempo impreciso de Marcelo a.c. (antes da canonização).

 

O Marcelo d.c. (depois da canonização – período que pode ser grosseiramente datado como tendo início coincidente com o primeiro mandato como Presidente da República), corresponde à projecção de uma imagem de pai espiritual da nação, num misto de mestre de sapiência, confessor e guru de auto-ajuda. Popular e afectivo, acessível e jocoso, presente até ao limite da intrusão, inscreveu-se no quotidiano de todos nós. 

 

O Marcelo a.c. era descrito como um génio mefistofélico hiperactivo, instável e propenso a tropelias, destilando sarcasmo e veneno em doses equivalentes, com um talento desmesurado para a elaboração de cenários políticos e uma vocação incontrolável para ser fonte de manchetes jornalísticas, aos quais sacrificaria a lealdade e a discrição.

 

Não se pode dizer que o retrato do actual Presidente da República que emerge do livro de Pinto Balsemão seja surpreendente ou original. E também não nos devemos prender em demasia a um retrato-robô, sobretudo tratando-se de uma figura com tantas nuances. Como escreveu Hugo Gonçalves no seu romance Deus Pátria Família: “Os limites da memória humana existem por um motivo, não são uma falha evolutiva, antes um sistema de protecção existencial. É preciso esquecer para seguir adiante.” Como o próprio Balsemão reconhece, os dois têm hoje uma “relação cordial”.

 

Claro que há sinais de permanência, indícios de um “como sempre, como dantes”. Aí estão as gordas do Expresso para o provar. O mestre da culinária jornalística, por interposto gabinete, a “marcar a agenda”, a soprar para o semanário a sua “análise” de comentador encartado, Presidente da República em part-time. No fundo, aquilo que em artigo no Público Pacheco Pereira denomina de “jornalismo dos cenários”, que “teve um efeito de superficialização da actividade política e introduziu um estilo especulativo em que, como não é escrutinado, o público não percebe como muito pouco acerta na realidade e como muitos dos ‘cenários’ nunca se realizam.” Ao permitir mais visibilidade ao Expresso e se garantir maior circulação paga, agradará ao patrão da Impresa? Ou ficará desgostoso com este padrão de jornalismo?

IRRITAÇÕES

Agosto 29, 2021

J.J. Faria Santos

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Cristiano Ronaldo regressa ao Manchester United e o frenesim mediático instala-se. Tirando o talento invulgar, o profissionalismo inexcedível e as conquistas individuais e colectivas, dispenso tudo o resto que envolve o personagem. A começar pelas manifestações do seu desmesurado ego e a terminar nas aventuras empresariais e artísticas da família, passando pelo exacerbado papel de Mãe Coragem da D. Dolores, como se não existissem milhares de mulheres que com sacrifício pessoal e abnegação lograram ultrapassar dificuldades e contrariedades em busca de melhores condições de vida.

 

Apesar de todo o progresso científico, permanecia uma evidência a impossibilidade de prever o dia e o local em que ocorreria um sismo. Até agora. A azougada Suzana Garcia promete pôr muita gente a tremer das pernas no dia 26 de Setembro, num movimento tectónico com epicentro na Amadora. Os traficantes, a direita fofinha, a esquerda caviar, os tachistas, os burocratas, todos vão tremer. Até os populistas, diz ela, o que torna inevitável que também tremelique quem pretende fazer desabar os adversários à força de demagogia, olhos arregalados, língua destravada e rosto à beira da apoplexia. É o chamado efeito de ricochete.

 

Henrique Monteiro assinala no Expresso a saída do livro de memórias de Pinto Balsemão. Do “príncipe” da Lapa, de quem Monteiro diz nortear o seu comportamento por um estrito código de honra, ficámos a saber que chegou a viajar “pendurado num trolley do eléctrico para poupar dinheiro para ir ao cinema” (lá está, a caução cultural que desculpa a transgressão). Mas o mais relevante, com direito a chamada de primeira página, é o facto de ele se referir à mulher como “Queen Mother”. Monteiro diz que tal se deve à “influência emocional e apaziguadora” que Mercedes (aka Tita) exerce sobre Francisco. Mercedes, majestosa e benevolente, reinará sobre esta aristocracia por afinidade com a sabedoria de quem tendo lidado com sumidades de petit nom é capaz de limar arestas e evitar choques de titãs (ou Titas…)

 

De quem se diz ser um “príncipe” da política, no trato e na acção, é Jorge Sampaio. Republicano impenitente, recusaria este título, mas seguramente não levará a mal que o consideremos um gentleman. Numa altura em que se debate com problemas de saúde, questão de foro privado e a ser tratada com discrição e elegância, seria de esperar que o actual Presidente resistisse a ocupar o palco, qual repórter com fontes privilegiadas, protagonista de um lancinante Última Hora. Poderia deixar o boletim clínico para o hospital ou para o gabinete de Sampaio, mas seria pedir demais. Em plena Feira do Livro do Porto, logo tratou de relatar à comunicação social o que o médico da Presidência da República lhe transmitira acerca do estado de saúde do ex-chefe do Estado. Ninguém escapa à sua natureza, nem a coberto do verniz institucional.

 

Imagem: "Grand Shore" de Richard Ahnert (courtesy of Bert Christensen)

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