O TRIUNFO DOS DEPLORÁVEIS DE BEM
Março 24, 2024
J.J. Faria Santos
O povo costumava ser sereno. Agora, graças aos detergentes do Chega, que se propõe “limpar Portugal”, a indignação do povo puro contra a elite corrupta (Cas Mudde dixit) viu-se amplificada para um batalhão de 50 homens, a maior parte a fazer a recruta. A civilidade e a boa-educação costumavam ser activos valorizados, mas agora são vistos como sinónimo de hipocrisia. O povo está cansado, desiludido, em modo de protesto. E o protesto, dizem os branqueadores dos detergentes, tende a ser ruidoso, agressivo q.b. e, cada vez mais, inorgânico. O comportamento da bancada parlamentar do Chega, passado, presente e futuro, assinalará a tomada efectiva do poder pelo povo (isto é, de uma certa visão do povo), um lugar de osmose entre os representados e os representantes.
Uma pequena amostra: uma deputada negra, em plena manhã parlamentar, a ser saudada com um “Boa noite, senhora deputada” (um involuntário lapsus linguae, certamente…); imitação dos “grunhidos de um porco” quando uma deputada passa pela bancada dos detergentes (porventura um desconforto ou uma inoportuna obstrução nasal…); uma deputada comparada a um “peixe-balão” (obviamente um estímulo à adopção de um regime alimentar mais saudável…) e outra apelidada de “senil” (uma forma pouco subtil de, digamos, apontar a pouca jovialidade dos argumentos da oponente); apupos e apartes sistemáticos e ruidosos, uma deputada a ser aconselhada a não frequentar o bar, um assessor de um partido político rival ameaçado fisicamente. Estes exemplos citados num artigo da revista Sábado exemplificam o modo de actuação da bancada parlamentar do Chega, que cita um ex-militante a justificar a importância do “máximo ruído possível” na AR, porque “faz toda a diferença na televisão”. Foi contra esta estratégia que Augusto Santos Silva, na qualidade de presidente da Assembleia da República, se insurgiu em defesa do regimento, do decoro, do civismo e da democracia. Mas para os comentadores auto-intitulados “furiosamente anti-socráticos”, como é o caso de João Miguel Tavares (Público – 23/03/2024), “a não eleição de Santos Silva é uma grande vitória da democracia”, visto tratar-se do “homem que fez tudo para manter Sócrates no poder; (…) para suprimir a voz daqueles que se lhe opunham” (?). A vitória do Chega, diz ele, é “o grito do bárbaro” que estava amordaçado, e a derrota de Santos Silva “um justo castigo dos céus”.
Esta formulação punitiva e com um travo religioso ajusta-se à retórica de Ventura. Afinal foi ele que escreveu nas redes sociais: “Deus confiou-me a difícil mas honrosa missão de transformar Portugal”. Esqueçam a possibilidade de blasfémia ou de invocação do nome de Deus em vão. Com 49 apóstolos em adoração, André, o Venturoso, promete fazer jus ao lema Deus, pátria, família, trabalho, ruído. Num partido tão amigo da ordem e de penas agravadas, não se estranhe que lá caibam, como escreveu Miguel Carvalho no Público em 25/02/2024, “os que atiram a matar, agridem imigrantes ou assaltaram caixas de esmolas”. É que o deus Ventura é infinitamente misericordioso e este é o tempo dos deploráveis de bem.