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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

A POESIA BRUTA DA ECONOMIA DOMÉSTICA

Outubro 10, 2021

J.J. Faria Santos

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Cortesia de uma gravidez inesperada, de um namorado violento, de um pai abusivo e de um conjunto de empregos mal pagos, Stephanie Land viu-se atirada para a terra da pobreza, uma povoação mal-afamada, vista por parte dos afluentes como território dos incapazes, dos fracos, dos que sucumbem ao vício ou ao comodismo. Stephanie Land não se encaixa neste perfil estereotipado e injusto e a sua história, contada pela própria no livro Maid: Hard Work, Low Pay, and a Mother´s Will to Survive (Empregada Doméstica: Trabalho Árduo, Salário Baixo, e a Vontade de Sobreviver de uma Mãe), agora transformado numa série da Netflix, é um testemunho pungente de uma luta titânica pela sobrevivência e pela manutenção da dignidade.

 

Num ensaio para a Time, Land revela que quando assinou o contrato com a editora para a publicação do livro, era ainda a mãe solteira de duas crianças de 2 e 9 anos pressionada por um ordenado em atraso e forçada a reduzir na alimentação e a ingerir piza paga com um cheque careca. Nada de original para quem utilizou frequentemente senhas de alimentação (food stamps), cortava refeições e reservava a fruta fresca para as crianças. Mesmo o adiantamento que recebeu da editora para escrever o livro (“uma quantidade de dinheiro que não parecia real”) não lhe permitiu esquecer os 20 000  dólares para pagar referentes ao cartão de crédito, uma viatura constantemente avariada e os 50 000 dólares que devia de empréstimos que contraíra para estudar. Já para não falar do desequilíbrio emocional e mental.

 

Emily Cooke, na crítica que publicou no New York Times acerca deste livro, escreveu que, apesar de ele não ser particularmente virtuoso, devemos escutar uma autora que “ultrapassou as agruras dos anos de empregada doméstica, de corpo exausto e mente assoberbada por uma aritmética sombria, para nos doar o seu testemunho”. Cooke chama ao equilíbrio instável das despesas (renda, alimentação, combustível, seguros, etc.) e das receitas (ordenado ligeiramente acima do salário mínimo e o “escasso apoio governamental concedido em prestações com espectacular relutância”) “a poesia bruta da economia doméstica”. A propósito da “avareza” governamental, sempre me provocou asco a veemência com que alguns  esgrimem (com pouco fundamento, aliás) o argumento da fraude nos subsídios que pretendem mitigar a pobreza, por comparação com a suavidade com que lamentam as “irregularidades” na obtenção e utilização dos subsídios disponibilizados às empresas.

 

Numa estratégia de luta contra a pobreza, antes de se partir para uma abordagem multidimensional (que vai da assistência social à saúde, da habitação à educação, visando a autonomização dos sujeitos e a consistência das soluções personalizadas), é preciso não esquecer o patamar inicial de emergência, que exige acção imediata. Como escreveu Stephanie Land no seu ensaio na Time: “Quando as pessoas me perguntam como podem ajudar, eu digo-lhes para perguntarem às pessoas do que é que sentem necessidade. Aposto que as respostas serão coisas como tampões ou fraldas e dez dólares para combustível, porque a vida é tão tacanha e limitada quando se tem fome que não se exige habitação a custos controlados e um salário adequado. Isto é só para aqueles de nós que têm meios para lutar.”

 

IMAGEM: edition.cnn.com

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