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NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

CASA DOS SEGREDOS: EDIÇÃO PALÁCIO DE BELÉM

Outubro 26, 2025

J.J. Faria Santos

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André V. é o candidato multiusos. Líder de um partido unipessoal, é um patriota fervoroso e um católico conservador. Embora com um perfil interventivo e conflituoso, fisicamente não corresponde ao estereótipo do tipo musculoso e tatuado. Espera-se que seja bom nas “dinâmicas” e “dê muito canal”. Aguarda-se com expectativa a possibilidade de instituir na casa a prática de rezar o terço. A produção já acedeu ao pedido dele de que negociassem com a Shein a produção de vestuário e acessórios que correspondam ao conceito de cilício. Trata-se de um candidato com reais possibilidades de ser finalista, dada a sua poderosa retórica e o desassombro com que interpela os outros concorrentes. O facto de para ele a verdade ser um país estrangeiro pode constituir um obstáculo.

O seu segredo é: a Dina queixa-se que eu gosto mais do António e do Santiago do que dela.

 

Luís M. tem a seu favor os anos de exposição mediática a explicar aos portugueses a intrincada substância da política. Se pode beneficiar da familiaridade, também pode ser prejudicado pelo ricochete de uma actividade que, para ser bem-sucedida, não pode prescindir de alfinetadas que deixam marcas nas peles mais sensíveis. Ser um concorrente na linha da magistratura dos afectos, pode acabar por ser nocivo. É que os espectadores estão algo agastados por um perfil de afectuosidade especializado em facadas nas costas, e podem julgar Luís M. por este padrão. Comunicativo, com envergadura que lhe permite jogo de cintura e com ligações a um poder tendencialmente hegemónico, trata-se de um concorrente que brilhará na cozinha, misturando ingredientes e recriando receitas, ao mesmo tempo que confeccionará pratos e controlará a dieta de André V., de forma a impedir que o refluxo gástrico o impulsione para a vitória.

O seu segredo é: gosto que a minha mulher me dê de comer na boca.

 

Henrique M., o favorito do público, é, nesta edição, o mais recente representante da linhagem dos militares, ilustres porta-estandartes de um código de ética e de conduta. Alto como o céu e de olhos azuis como o mar, é visto como alguém que organizou exemplarmente os serviços de vacinação e, quiçá, terá até repelido a pandemia. Disciplinado e disciplinador, não tolerará camas desfeitas, roupas pelo chão ou concorrentes a desfilar pelo palácio sem aprumo ou de boxers. Espera-se um confronto com André V. (embora amenizado por cavaqueiras no confessionário) e com um Luís M. demasiado disponível para o improviso, o que choca com o seu rigor de planificador. Inicialmente emparedado entre o “socialismo e a social-democracia”, conseguiu, qual Houdini, evadir-se. Irritou André V. quando afirmou que “passados 10 anos um imigrante é tão português como nós”, o que, outrossim, foi interpretado em certos círculos como uma “porta escancarada” para os estrangeiros que querem ser “portugueses de raça”.

O seu segredo é: adoro malhar nos negacionistas e estar no Cockpit com o Nuno Melo.

 

Tozé S. entrou na casa com pezinhos de lã, carregado de chá e simpatia. Diz-se livre e independente. Diz que sabe ouvir, unir, decidir e agir. Se André V. disse que o país precisa de “três Salazares” para ser posto na “ordem”, Tozé S. replicou que Portugal “não precisa de ditadores”. Cordato e sensível, na opinião de um destacado fã do programa (Miguel Sousa Tavares) “desperta em nós um entusiasmo equivalente a uma Quarta-Feira de Cinzas”, e “fala como se estivesse programado pela inteligência artificial”. Pode ser visto como uma “planta”, gíria de reality show para concorrentes amorfos, mas não se deve desvalorizar o seu potencial de underdog junto dos espectadores, que costumam ser generosos com os concorrentes humildes e transbordantes de bondade. Com arrojo, o Kennedy de Penamacor declarou: “Não pergunto às pessoas de onde é que vêm, pergunto para onde querem ir”, arriscando que os telespectadores decidam o televoto com base na premissa de José Régio: “Não sei para onde vou / -Sei que não vou por aí!”.

O seu segredo é: no dia 25 de Abril de 1980 esquivei-me a ajudar uma velhinha a atravessar a rua.

 

Imagem: pormenor de ilustração de Helder Oliveira para a Revista do Expresso

O BILDERBERG DE TORRES VEDRAS, A GLÓRIA DE MOEDAS E A MODERAÇÃO FURIOSA DE SEGURO

Setembro 14, 2025

J.J. Faria Santos

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À luz de Agosto, no remanso da Quinta da Carlota, reuniram-se para debater “assuntos de interesse comum” (segundo notícia do Público), o Onassis português (Mário Ferreira), o encarregado de Deus (André Ventura) e o Neptuno que vai pôr a piolheira na ordem (Gouveia e Melo). Sobre este Bilderberg de Torres Vedras, ninguém esteve disponível para prestar declarações. Não se percebe muito bem que “interesses comuns” possam ter Ventura e Gouveia e Melo, depois de o primeiro ter disponibilizado o apoio ao segundo e deste ter ostensivamente enxotado os cheganos da sua comitiva. A menos que o Henrique, enquanto hesita entre projectar uma imagem de autoridade que possa resvalar para o autoritarismo ou amaciar a sua intervenção, arriscando que Ventura lhe chame “frouxo”, tenha interiorizado que talvez venha a precisar dos 20%  dos “extremos” para vencer na segunda volta das presidenciais e que seria avisado não hostilizar em demasia o eleitorado do Chega.

 

Lisboa deveria ser o elevador das ambições de Carlos Moedas até à glória do cargo de primeiro-ministro. A presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, acha que ele tem “qualidades raras” para um político. “Humano, entende, consegue falar com qualquer pessoa e ouve muito as pessoas”, declarou em Junho de 2023. Infelizmente para ele, o que ressalta do seu perfil em 2025 é a relação conflituosa com a verdade, a vitimização enquanto estratégia política, a desadequação psicológica para lidar com contrariedades, a falta de obra feita, a fuga a explicações e a dependência da propaganda. Em suma: amuos, mentiras e vídeos no TikTok, rede social onde tem dezasseis vezes mais seguidores do que Alexandra Leitão e cerca de 4% dos seguidores de André Ventura.

 

Hostilizar é uma palavra que não combina com António José Seguro, aspirante a Presidente da República, cuja candidatura, garante, “não surgiu numa combinata [boa sorte na pesquisa da palavra nos dicionários…] num directório partidário”, razão pela qual, assegura, tem muitos apoios de todos os quadrantes políticos. No contexto de uma conjuntura polarizada, Seguro oferece moderação e “cultura de compromisso”. É louvável. Analistas de diversas procedências ideológicas caracterizam-no como um candidato sério, decente, honesto. E, no entanto, a dúvida, a inquietação, persiste. A de que a moderação se traduza numa falta de assertividade paralisante que redunde na inutilidade. Assim como se, depois de ter criado a “abstenção violenta”, cunhasse a moderação furiosa, ambas consistindo num marcar de posição com a perenidade das palavras escritas na areia que a maré apaga.

CHEGA DE FUTURO

Maio 25, 2025

J.J. Faria Santos

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“Se, antigamente, o jogo político consistia em afinar uma mensagem que unia, hoje em dia trata-se de desunir da maneira mais deslumbrante possível. Para se conquistar uma maioria, já não é preciso convergir para o centro, mas adicionar os extremos.” Pode esta citação de Giuliano da Empoli (“Os Engenheiros do Caos” – edição da Gradiva) sintetizar a estratégia eleitoral de Luís Montenegro? O que é certo é que a cedência da AD àquilo que Cas Mudde apelida de hibridização, visível na forma como a coligação explorou a questão da imigração (com direito a anúncio de deportações), se lhe trouxe ganhos, também reforçou a normalização do discurso do Chega. Sendo assim, a adição dos extremos acabou por ser limitada. E se contribuiu para um reforço da votação na AD e para a devastação do principal partido de esquerda, teve o dano colateral de reforçar a ameaça a curto prazo representada pelo partido de Ventura. Seja resultante de alterações sociais motivadas por mudanças estruturais na economia, seja motivada pela alteração de valores associados a mudanças culturais, teve como consequência a consciência por parte da classe política de que “a mobilização de preferências da direita radical é uma estratégia eleitoralmente viável”. (Vicente Valentim – O Fim da Vergonha – edição da Gradiva)

 

Cordão sanitário ou negociação à la carte, eis as opções ao dispor do primeiro-ministro, que recorre sistematicamente a um estilo de comunicação avarento e propositadamente ambíguo, ao mesmo tempo que vai alegando clareza e acusando de má-fé os interlocutores, porque só não percebe quem não quer perceber ou é estulto. Não só algum PSD como também as restantes direitas parecem querer sucumbir à estratégia de recorrer ao Chega como tropa de choque para materializar em termos práticos a hegemonia adquirida nas eleições. A ideia é esta: se a exclusão/contenção não resultou, porque não experimentar a incorporação? 

 

A tese dominante é a de que o Chega é um íman para os “ressentidos” que “perderam a vergonha”. O ressentimento é o estado de espírito (um rancor resultante de uma situação de inferioridade percepcionada como injusta) que legitimou a aposta no radicalismo, ancorado no nacionalismo e na defesa dos valores tradicionais. Claro que há magnanimidade, desde que enquadrada pelos termos definidos pelo Chega. Veja-se o elogio de Pedro Frazão ao médico imigrante europeu, que “fala português”, e que “salvou a vida de André Ventura”, quando este se debatia de forma heróica com a “queimação interna” que lavrava nas suas entranhas.

 

Será demasiado tarde para acreditar na transformação do ressentimento em re-sentimento? Este prefixo abre todo um campo de novas possibilidades. É usado para exprimir a ideia de “repetição, intensidade”, mas também de  “reciprocidade e movimento para trás”. Os Da Weasel, que cantaram o ”re-tratamento”, podiam dar uma ajuda. Também é possível que o povo, essa entidade abstracta constituída por milhões de indivíduos, a quem os comentadores políticos atribuem uma capacidade mediúnica de convergir de maneira a formar uma vontade colectiva imediatamente discernível, esteja ele próprio mais sintonizado com estas palavras de Antonin Artaud: “Nada me espera para pedir contas, mas eu tenho contas a pedir a alguns ignóbeis velhos labregos da doutrina, contas a pedir por retardarem a vida com os seus sentimentos, paixões, instituições”. (Antonin Artaud – “Os Sentimentos Atrasam” – Hiena Editora)

 

As recentes eleições não decretaram apenas a consolidação da alternância. Clãs inteiros, todos os grupos sociais, os homens até aos 55 anos e uma parcela significativa dos jovens professaram a sua fé em André Ventura. E é a fé que os vai salvar. O ressentimento desvaloriza a consistência das ideias, ou a viabilidade da sua concretização, e valoriza a performance. Mais do que um líder político, Ventura é para muitos uma espécie de líder espiritual, cujo discurso se parece inspirar no Deus do Antigo Testamento. O Chega de Ventura é um chega de futuro, apenas, ou também um Chega de futuro?

O CHEGA É UMA SÉRIE DA NETFLIX

Fevereiro 08, 2025

J.J. Faria Santos

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Prostituição de menores. Furtos a casas, igrejas e terminais de aeroporto. Violência doméstica. Ofensas à honra e imagem. Incitamento ao ódio. Agressão a um árbitro. Dívidas e declarações falsas em tribunal. Condução sob a influência de álcool. Agressões, cuspidelas e insultos. Comportamento no Parlamento ao melhor estilo de um gangue de arruaceiros. As palavras “Chega”, “limpar Portugal” e “portugueses de bem” na mesma frase só podem gerar um ataque compulsivo de riso.

 

O Chega é uma série da Netflix, um cruzamento entre House of Cards e Shameless, que bem se poderia chamar Enough is Enough (o tema de Donna Summer e Barbra Streisand poderia abrilhantar o genérico). O segmento em que Nuno Pardal sucumbe à sua predilecção por efebos, questionando o objecto da sua afeição se ele já tinha estado com algum “daddy” e solicitando “nudes”, poderia decorrer ao som de Daddy Cool dos Boney M ou de Relax dos Frankie Goes to Hollywood. Por outro lado, o caso de Miguel Arruda daria origem a uma feroz luta no casting. Quem de entre afamados actores nacionais ou estrangeiros não quereria interpretar um personagem que reúne em si todos os dramas da contemporaneidade? A dependência do consumo e a compulsão para a acumulação, o empreendedorismo low-cost com a contenção dos gastos assente na cleptomania, a ameaça da inteligência artificial, o desejo de ordem num mundo em convulsão, o stress pós-traumático depois de renegado pelos pares, que se manifesta através de espasmos nos membros superiores semelhantes à saudação nazi. E depois há o sotaque. Que actor de composição não se entusiasma por um personagem com sotaque?

 

O primeiro episódio terminaria com o chefe da agremiação depondo perante o tribunal da comunicação social, anunciando ser “intolerante ao crime” (há quem seja ao glúten, à lactose ou aos sulfitos). “Se isto se confirmar”, esclareceria um Ventura na plena posse de toda a sua indignação, o Pardal terá de “ser castrado”. (Neste momento, sublinhando com subtileza esta poderosa e, diria mesmo, arrepiante sentença, escutar-se-ia a voz do último castrato, Alessandro Moreschi, interpretando um pungente “Crucifixus”.) E a rematar a cena, antes do genérico final, um flashback em plano fechado com Ventura a advertir: “É mesmo para instaurar uma Ditadura. De tal forma dura que quem abusar de crianças nunca mais o conseguirá fazer. Quem roubar dinheiro dos portugueses nunca mais será eleito. E quem cometer crimes hediondos nunca mais andará em liberdade.”

 

Imagem: zap.aeiou.pt

A MISSIVA DO PROFESSOR DOUTOR ANDRÉ VENTURA

Janeiro 05, 2025

J.J. Faria Santos

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Ainda os portugueses se debatiam com a ressaca do réveillon quando o Presidente da República, Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, informou a nação de que, “na sequência da missiva remetida pelo Conselheiro de Estado Professor Doutor André Ventura”, solicitara que “a mesma fosse enviada aos demais Conselheiros de Estado para transmitirem o que tiverem por conveniente”.

 

Eu tenho a secreta esperança de que por trás da circunspecção e do sentido de Estado, a generalidade dos “demais Conselheiros” teriam uma quase irreprimível vontade de proferirem inconveniências perante um André Ventura que, com a elegância habitual, aludiu a eles como “um conjunto de pessoas com mais de não sei quantos anos a dizer o que lhes passa pela cabeça que não interessa a ninguém e a não acrescentar nada à vida do país”.

 

Convém esclarecer que o Professor Doutor André Ventura e o André Ventura não são exactamente a mesma pessoa. O primeiro escreve “missivas” onde “sugere” a realização de um Conselho de Estado que se debruce sobre “um estado de insegurança brutal” e demonstra interesse em revitalizar este órgão de consulta do Presidente. E é autor de uma tese de doutoramento onde deplorava “a estigmatização de comunidades” (“associadas, de modo superficial, ao fenómeno terrorista”), e via em determinadas acções policiais a expressão de “preconceitos sobre raça, nacionalidade ou religião”. Já o segundo especializou-se em dizer precisamente o que lhe “passa pela cabeça”, sem preocupação de rigor, veracidade ou adequação, e explora os instintos e os medos mais primários dos cidadãos, não hesitando na utilização de linguagem ou gestos miméticos de regimes radicais ou extremistas. E, evidentemente, só pode rejeitar a associação intensiva das suas credenciais académicas, susceptíveis de o colarem a um elitismo que o afasta do típico “português de bem”.

 

Do mesmo modo, o Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa e o Marcelo são entidades distintas. Um é um prestigiado académico, constitucionalista de alto coturno, voluntário de causas nobres e analista política de inteligência fulgurante. O outro, o Marcelo, é um afamado criador de factos políticos (uma espécie de “percepções”), um vigoroso entertainer que, como todos, tem o supremo objectivo de ser amado, um arrojado traçador de perfis psicossociológicos e um pecador relapso que se desdobra em actos de contrição com a certeza íntima da absolvição.

 

Há pelo menos uma coisa que estes dois sósias dos Dr. Jekyll e Mr. Hyde têm em comum: ambos já foram fotografados a rezar numa igreja. Mas se André Ventura “sente e sabe” que a sua “missão política está profundamente ligada a Fátima”, e considera este o seu “grande Segredo” (sim, em maiúsculas), Marcelo chegou a deslocar-se a Fátima “de 15 em 15 dias para rezar”, segundo um reputado semanário “atormentado pelo gozo e pela culpa”. Que Deus lhes perdoe. E se tardar a manifestação de misericórdia do Todo-Poderoso, podem sempre escrever-lhe uma “missiva”.

A CORJA

Outubro 27, 2024

J.J. Faria Santos

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Por ter obtido mais de um milhão de votos, a corja acha-se no direito de trazer para a casa da democracia os seus hábitos de má-criação e grosseria, trocando o debate de ideias pelos apartes acintosos, pelo insulto pessoal e pelo ruído desestabilizador. Achando-se legitimada pelo voto popular, a corja, que tem uma relação estreita com a falsidade e convicções flutuantes, reclama para si o direito de espalhar de forma impune a mentira e de contribuir para o discurso de ódio.

 

A corja, em quem ninguém verdadeiramente confia, deve o seu sucesso eleitoral a um voto de protesto mais do que a uma manifestação de esperança num ideário sem qualquer consistência. Que futuro pode legar um partido que se esgota num discurso securitário, que estigmatiza comunidades e imigrantes, que parece ignorar os procedimentos do Estado de direito e  multiplica declarações onde se acotovelam a ignorância, a inverdade, a má-fé e a ilegalidade?

 

A corja só entende e propaga a linguagem do sectarismo. Que é a que melhor se aplica ao estilo inflamado do seu líder, que combina o discurso articulado e o raciocínio encadeado com as frases feitas, a demagogia e o descompromisso com o rigor e a veracidade. Tudo serve de pretexto para a indignação performativa, para o gesto enfático, para a voz projectada pela irascibilidade. Qualquer debate é um duelo sem regras. Elevar o tom de voz, interromper por sistema, matraquear “argumentos”, interpelar o oponente com acinte.

 

A corja, habituada à complacência da comunicação social e ao aturdimento da classe política e da sociedade em geral perante um comportamento tão manifestamente grotesco e vil, julgando-se imune e impune, esticou a elasticidade da tolerância democrática e ela partiu. Em causa estão afirmações, no contexto da morte de Odair Moniz, baleado por um agente da PSP, que podem configurar a apologia de um crime e um incentivo à desordem. “Obrigado era a palavra que devíamos estar a dar ao polícia que disparou sobre mais este bandido.”, disse André Ventura nas redes sociais. “Menos um criminoso…menos um eleitor do Bloco”, escreveu no X Ricardo Reis. “Se a polícia atirasse mais a matar, o país estava em ordem”, disparou Pedro Pinto em pleno estúdio da RTP3.

 

O líder da corja gosta de se fazer fotografar ajoelhado a rezar em igrejas, dando testemunho da sua fé. O patente farisaísmo só pode ser redimido pelo uso intensivo do cilício, dada o conflito insanável entre a doutrina social da Igreja e as proclamações da corja. Mas se a misericórdia de Deus é infinita, a paciência dos homens é limitada e a lei dos tribunais é dura, mas é lei. E não vale a pena brandir o trunfo da liberdade de expressão, dado que esta  não é uma carta branca para violar a lei. E também não vale a pena apostar na vitimização. Porque para aquele que faz assentar as suas intervenções públicas na implacabilidade, que arregimenta seguidores com base numa linguagem agressiva e bruta, seria uma demonstração de fraqueza e um convite à autofagia.

SEI O QUE DISSESTE NO PASSADO DIA 15 DE JULHO

Outubro 12, 2024

J.J. Faria Santos

 

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Sabemos quando é que o thriller político derivou para o slasher em versão assassinato de carácter. Foi quando o líder do Chega ligou o modo de linchamento e, no seu estilo empolgado e ofegante, colou o ferrete da mentira ao primeiro-ministro, arrastando-o para a sua arena favorita: a luta na lama. Sucede que André Ventura tem um problema de credibilidade, mesmo na era da pós-verdade em que a falsidade foi normalizada, dado que se apresenta como um mentiroso compulsivo, que não hesita em distorcer ou inventar factos e correlações. Perante a circunstância de ter afirmado que “o primeiro-ministro mentiu”, que “quis chegar a um acordo de Orçamento” com o seu partido e que admitiu, inclusivamente, que “o Chega viesse a fazer parte de um governo num contexto político diferente”, recai sobre ele o ónus da prova.

 

O primeiro-ministro desmentiu-o de imediato na rede social X, escrevendo que “nunca o Governo propôs um acordo ao Chega”.  Devolvendo o labéu de mentiroso, atribuiu tal comportamento ao “Desespero” de Ventura. O problema da luta na lama são os salpicos. E mesmo na calúnia a dúvida é um salpico. Sucede que antes da consolidação do “não é não”, nem sempre Montenegro foi suficientemente assertivo. Acresce que o historial do seu discurso político encerra alguma economia de verdade, apropriação de medidas alheias e, sobretudo, falta de clareza. Terá ocorrido, entre Ventura e Montenegro, “um erro de percepção mútuo”?  Terão sido necessárias 5 reuniões, que Ventura diz terem ocorrido, para que o primeiro-ministro se convencesse de que o Chega não é um parceiro confiável? Em relação à derradeira, que terá ocorrido a 23 de Setembro (no mesmo dia em que terá recebido a IL), Montenegro, em declarações à comunicação social, fez questão de frisar o seu empenho em “dialogar com os partidos políticos”, de forma a “esgotar, de forma paciente, de forma empenhada, de forma aberta, de forma dialogante, todas as possibilidades para que, na Assembleia da República, a proposta de Orçamento do Estado não seja inviabilizada”. Terá o primeiro-ministro, algures neste lapso de tempo, alimentado a expectativa de negociar, via “reuniões discretas”, a aprovação do OE com o seu ex-correligionário André Ventura? E se, emulando a fábula de Pedro e do Lobo, o mentiroso compulsivo estivesse agora a falar verdade e, por natural repulsa, quase ninguém acreditasse nele?

 

Porque é que isto é relevante? Porque quer à esquerda (“uma derrota histórica para o PS e para todos os democratas” – Sérgio Sousa Pinto), quer à direita (“O PS está disponível para trair a democracia que fundou” - Francisco Mendes da Silva), Pedro Nuno Santos está a ser acusado de, ao não viabilizar o Orçamento, permitir que o Chega ganhe um papel central nos acordos de regime e, consequentemente, adquirir respeitabilidade. Independentemente das teorias divergentes acerca do que reforça mais o radicalismo populista de direita, parece estar em cima da mesa uma espécie de superioridade moral do PSD, consubstanciada na doutrina “não é não”. O mínimo indício de que o primeiro-ministro insinuou, ponderou ou admitiu um qualquer acordo com André Ventura pode não anular os argumentos de quem defende a viabilização do OE pelo PS, mas transforma seguramente o “não é não” num problemático talvez se. É por isso que, para o primeiro-ministro, mesmo que se queixe da inversão do ónus da prova, devolver acusações em maiúsculas no X e afirmar não ter mais nada a declarar não é suficiente.

 

ANDRÉ VENTURA VS PAPA FRANCISCO

Abril 02, 2023

J.J. Faria Santos

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André Ventura (A.V): “Não consigo dissociar, nem vou conseguir até morrer, o meu discurso público da parte religiosa.”

 

Papa Francisco (P.F): “A fé não serve para decorar a vida como se fosse um bolo com nata.”

 

A.V: “Quando acreditamos que o que fazemos tem um propósito, pode ser por convicção e muitos podem achar que é loucura. Quando o fazemos porque acreditamos que há uma missão divina que nos é atribuída não temos como fingir que não é assim.”

 

P.F.: "A pessoa religiosa sabe que uma das maiores blasfémias é usar o nome de Deus como garantia de seus próprios pecados e crimes, para justificar assassínios, escravidão, exploração em todas as suas formas, opressão e perseguição de pessoas e populações inteiras."

 

A.V.: “Não podemos criar a cultura de que não trabalhar é melhor do que trabalhar. É isto que está enraizado hoje. Enquanto ando pelo país todo, dizem-me que não há ninguém para trabalhar. E sabe porquê? Porque uma grande parte está a receber subsídios.”

 

P.F.: “Discursos políticos que tendem a atribuir todo o mal aos imigrantes e a privar os pobres de esperança são inaceitáveis”

 

A.V.: “A política de portas abertas sem qualquer controlo deu nisto. O sangue destas vítimas é responsabilidade do criminoso afegão, mas está nas mãos do governo de António Costa.” (acerca do ataque ao Centro Ismaili, em Lisboa)

 

P.F: “Os imigrantes não são um perigo, estão em perigo. Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria, até por algumas autoridades políticas, e ficar impune.”

 

A.V.: “Costumo dizer isto: o Chega é a religião dos portugueses comuns, daqueles que trabalham, que pagam impostos, que se sentem excluídos. Portanto, eu não preciso do apoio de nenhuma igreja, nem quero. Eu acho que este Papa tem prestado um mau serviço ao cristianismo. Acho. Acho que tem mostrado a esquerda revolucionária quase como heróica e a esquerda europeia marxista como a normalidade. Acho que este Papa tem contribuído para destruir as bases do que é a Igreja Católica na Europa e acho que em breve vamos todos pagar um bocadinho por isso.”

 

P.F.: "Cuidar dos pobres não é comunismo, é a mensagem evangélica da Igreja Católica muito antes do comunismo ser inventado. Não nos deixemos seduzir pelos cantos de sereia do populismo, que explora as necessidades do povo propondo soluções muito fáceis e precipitadas. Não sigamos os falsos 'messias' que, em nome do lucro, apregoam receitas úteis apenas para aumentar a riqueza de poucos, condenando os pobres à marginalização."

 

Fontes: dn.pt, reuters.com, visão.sapo.pt, poligrafo.sapo.pt, expresso

Imagens: Vaticano News, Bruno Gonçalves 

CHEFE, MAS POUCO

Novembro 21, 2021

J.J. Faria Santos

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André Ventura, já se sabia, é líder de uma sociedade política unipessoal, com uns estatutos manhosos e uma doutrina pouco consistente que alimenta uma acção política flutuante. O que é surpreendente é a contínua sabotagem da sua autoridade, trunfo inalienável para um líder da extrema-direita. É chefe, mas pouco. Goza de votações norte-coreanas, mas às vezes tem de ir às lágrimas até conseguir eleger a sua direcção.

 

O partido é temperamental, sanguíneo, delira com as propostas de castração química dos pedófilos (e 38 militantes apoiaram a moção que propunha a remoção dos ovários das praticantes da IVG) ou com o corte até 75% das pensões dos políticos, mas alheia-se das grandes proclamações ideológicas e das tiradas do vice-presidente Gabriel Mithá Ribeiro, que vê Marcelo encavalitado “no topo da pirâmide leninista da espiral do silêncio” (?) que afectará a direita portuguesa. O partido acolhe as propostas que celebram a primazia do instinto, a suprema sabedoria do senso comum, e quem, como Ventura, pregou o desdém pelas elites não pode esperar que a sua palavra seja encarada como ordem divina. (Mesmo que os congressos do Chega pareçam, na descrição de um podcast do Observador, um culto religioso, com “choro, ranger de dentes, homens de joelhos, militantes de braços no ar” e lágrimas). Desacreditadas as elites, como haveria o militante do Chega de reconhecer em Ventura um espírito iluminado incontestado? 

 

Adicione-se a este contexto o espírito independentista insular e temos o caldo de cultura para que o deputado do Chega no Parlamento dos Açores, José Pacheco, desautorize o seu líder, afirmando: “Aqui não há nem fantoches nem totós, nem nada que se pareça. Aqui não há criadagem. A última palavra será sempre minha”. Face a esta declaração com perfume de luta de classes, o intrépido Ventura viu-se forçado a transformar a decisão “fortemente definitiva” de retirar o apoio do Chega ao Governo Regional dos Açores num “cenário não fechado” fortemente indefinido.

 

Ventura pode ter um discurso fluido, combativo e apelativo, com forte projecção na comunicação social, mas o seu apelo populista e anti-sistema sofre um abalo cada vez que se vê forçado a recorrer aos contorcionismos tácticos que condena nos seus adversários políticos. Aos olhos dos seus correligionários ( e dos seus potenciais eleitores), é uma vergonha que ele recorra à linguagem e às manobras dúbias utilizadas pelos políticos. Enredado no seu percurso ziguezagueante, Ventura pode muito bem vir a descobrir que o joker do seu populismo galopante é insuficiente para ganhar o jogo do voto útil.

 

Imagem: Paulo Novais/Lusa (dn.pt)

EPÍSTOLA DE ANDRÉ VENTURA AOS PORTUGUESES DE BEM

Janeiro 17, 2021

J.J. Faria Santos

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Portugueses de bem,

Deus confiou-me a difícil mas honrosa missão de transformar Portugal. São muitos os chamados e poucos os escolhidos. A 13 de Maio de 1917 Portugal mudou para sempre. Fomos escolhidos! Também eu senti esta mudança profunda num 13 de Maio da minha vida. Hoje sinto, sei, que de alguma forma a minha missão política está profundamente ligada a Fátima. É este, talvez, o meu grande Segredo. (Reparem que escrevi “Segredo” com letra maiúscula, seguindo as melhores práticas do grande Donald Trump.) E se porventura os Tomés desta vida, os incréus, acham que estou a invocar o nome de Deus em vão, eis que a iluminar o caminho surgiu a confirmação das instâncias internacionais. A grande Marine Le Pen, essa mulher corajosa e íntegra, não hesitou em comparar-me a um “sinal do céu”.

 

Ser primeiro-ministro. Eu sei que vai acontecer, só não sei é quando. E enquanto espero, candidato-me a Presidente da República. Na verdade, não importa o cargo, o que importa é levar a cabo a minha missão de livrar Portugal dos malandros, dos ladrões, dos pedófilos e dos ciganos que se passeiam de Mercedes e sacam subsídios ao Estado. O que eu defendo é a ditadura das pessoas de bem, o que transforma numa impossibilidade que eu seja o Presidente de todos os portugueses. Não vou ser o Presidente de José Sócrates, dos pedófilos e dos traficantes de droga. Nem da Ana Gomes. Com frontalidade, digo-lhe: “Ana Gomes, não és bem-vinda em Portugal e nunca serás eleita presidente da República Portuguesa.” Aos que não gostam do que eu digo, paciência, tenho direito à liberdade de expressão garantida pela Constituição. É certo que estou-me nas tintas para a  Constituição, mas nem  sempre nem  nunca. E  quando for eleito, jurarei cumprir e fazer cumprir a dita cuja. Quando estiver para aí virado, sempre depois de auscultar os portugueses de bem. Aos que me querem impedir de reformar Portugal, desafio-os com galhardia, coragem e o apoio inexcedível dos meus guarda-costas. Porque é que não me prendem? É mais fácil. Resolve-se o problema todo. O homem vai preso. Despacha-se o assunto.

 

Portugueses, concidadãos ditadores de bem,

Uma última nota para abordar a questão absolutamente essencial das mulheres que não estão bem em termos de imagem, notabilizadas pelos lábios muito vermelhos. Caiu o Carmo e a Trindade neste opressivo regime esquerdista em que estamos atolados. Já não se pode apelar à compostura, ao bom gosto, à discrição, à modéstia e à singeleza. Atiraram-me com os chavões do costume, do machismo à misoginia, porque eu, demonstrando o largo espectro dos meus interesses, me limitei a exibir o meu talento enquanto fashionista e consultor de imagem, aconselhando pro bono a candidata da esquerda caviar. Não perceberam a bondade do meu alerta? Paciência. Não recebo lições de moral dos amigos do charro. Só faltava confundirem o escritor com o narrador e implicarem comigo só porque, no meu romance de estreia, Montenegro, existe uma passagem na página 31 que alude à “natureza primitiva das mulheres” e à sua “mecânica cerebral simples”. Pode-se esperar tudo de gente que em vez de estudar e fundamentar bem as suas opiniões prefere o populismo das tiradas fáceis e dos soundbites… Valha-nos Deus, meu ídolo e mentor. Com a inspiração dele e a nossa determinação ergueremos um novo Portugal!

 

Este é um exercício de ficção, porém, as palavras assinaladas a cheio correspondem a afirmações proferidas por André Ventura.

Imagem: Cherry Red Lips, quadro de Giovannie Licea (saatchiart.com)

 

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