SHARON STONE DESCRUZA AS PERNAS PERANTE JOÃO PAULO III
Julho 12, 2020
J.J. Faria Santos
Sharon Stone está sentada em frente a ele, vestida de preto, recatada, mas com transparências, e o Papa João Paulo III começa logo por dizer que lhe ficaria “eternamente grato” se durante o decorrer da conversa ela evitasse o movimento de “descruzar e recruzar as pernas”. O tom é amistoso, quase sedutor, como se John Malkovich (que interpreta o Papa) estivesse a evocar o visconde de Valmont que encarnou em Ligações Perigosas. Stone sossega Sua Eminência e a conversa decorre em tom amistoso e permeável ao humor. Exemplo disto é a defesa do casamento gay para os católicos por parte dela, ao que ele responde que a Bíblia não o permite. Stone insiste e questiona se não pode haver um upgrade da Bíblia, o que obtém como resposta a explicação de que “a Bíblia não é um iPhone”.
Não está aqui em causa o dilema clássico de saber se é a vida que imita a arte ou se é a arte que imita a vida. Do que se trata é de um exercício provocatório em que uma sex symbol embarca na autoparódia com panache e sofisticação. É a ficção a recorrer a um facto que ocorreu (a existência de uma cena icónica do filme Instinto Fatal) para criar novas camadas de ficção, colocando uma figura real (a actriz Sharon Stone a fazer de si própria ou a ‘interpretar’ uma faceta de si mesma) a ser recebida em audiência papal. A cena abre o quinto episódio da série The New Pope, criada e realizada por Paolo Sorrentino (e exibida na semana passada no TVCine Emotion).
A dada altura, Stone confessa-se desconfortável, dado que um músculo da coxa (o adutor longo) estava a ficar entorpecido, pelo que se tornava imperioso cruzar as pernas no sentido oposto. Nada de particularmente ameaçador para os votos sagrados decorreu daqui. O Papa João Paulo III pediu apenas um momento para que ele e o restante séquito de clérigos desviassem o olhar num movimento síncrono. Devidamente autorizada, deu-se a coreografia das pernas, a que se seguiu novo movimento síncrono de cabeças na direcção oposta. Tudo isto foi pretexto para uma reflexão do Papa acerca da “beleza do sacrifício”, não deixando de admitir que ele pode ser acompanhado de alguma penosidade. Enfim, cada um carregará a sua cruz. Para alguns, ela foi um literal instrumento de crucifixão, um suplício para os condenados. Para outros, será somente o irromper do desejo insatisfeito face ao cruzar e descruzar de um par de pernas.
Imagem: Sharon Stone fotografada por Alix Malka para a Paris Match em Agosto de 2009 (pormenor)