SANGUE DO SEU SANGUE
Janeiro 09, 2022
J.J. Faria Santos
Já não bastava a um serial killer com código ético gerir as circunstâncias de uma nova identidade e de um novo habitat, bem como as manifestações dos seus instintos (o seu “passageiro negro”) e dos eventuais efeitos da abstinência de matar, eis que surge um fantasma do passado a exigir aptidões de paternidade. Quando Dexter Morgan, rebaptizado Jim Lindsay, que trocou o calor abrasador de Miami pelas paisagens geladas de Iron Lake (porventura mais consentâneas com a sua personalidade), viu subitamente emergir na sua habitação o filho Harrison, estava longe de perceber que a construção de uma figura paternal acarretaria não apenas o agudizar do instinto de protecção, com os riscos inerentes, como também deixar em suspenso a magna questão de saber se quem sai aos seus não degenera.
Dexter: New Blood, situada uma década depois do desaparecimento no olho de um furacão do mais célebre (mais celebrado?) dos assassinos em série, marca o regresso deste, a braços com um jejum (que se vai tornar intermitente?) de chacina e esquartejamento, que a Showtime pespega num cartaz com um mordaz “Long time no spree”. Aliás, as notas humorísticas são constantes, desde piscadelas de olho a outras séries (Fargo, por exemplo) até tangentes a Oscar Wilde. Se este terá dito, nos últimos dias de vida, lamentando a qualidade da decoração do seu aposento, segundo uns “Ou estas cortinas desaparecem ou desapareço eu” e segundo outros “Este papel de parede mata-me – um de nós terá de desaparecer”, o próprio Dexter acaba por ter uma exclamação do mesmo teor (“Eu deveria matar este tipo só por causa do papel de parede”).
Confesso que me é indiferente se o regresso de Dexter Morgan é produto da nostalgia de uma indústria que tem apostado no reboot de séries da era de ouro da TV ou se, por outro lado, é uma forma de emendar o desfecho da série original, quase unanimemente apontado como desapontador. Como escreveu Daniel Fienberg no The Hollywood Reporter: “No seu ponto mais alto, Dexter Morgan era a apoteose do anti-herói da televisão de prestígio. Ele tinha a brutalidade cómica e negra de Tony Soprano, a duplicidade astuta de Don Draper e a moralidade equívoca de Walter White elevadas ao extremo.” Mesmo que apenas uma fracção desta irresistível equação se manifeste neste Dexter: New Blood, já é o suficiente para que nos detenhamos colados ao ecrã, embrenhados nas contradições de um protagonista capaz de fazer abanar os alicerces morais das nossas mais arreigadas convicções. Prova disso é que o nosso fascínio seja superior à nossa repulsa.
Imagem: imdb.com