Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

NO VAGAR DA PENUMBRA

NO VAGAR DA PENUMBRA

REALIDADE ALTERNATIVA E ALTERNÂNCIA

Outubro 09, 2022

J.J. Faria Santos

834415.png

O presidente da câmara de Lisboa fez um discurso de líder da oposição a pedir “audácia” e “vontade de mudança”, enquanto perorava que o que tornava a vida “insuportável” para os portugueses era (A inflação? As taxas de juro dos empréstimos? A escassez habitacional? Os rendimentos baixos?) “o jugo fiscal”. O Presidente da República, escassos meses depois das eleições legislativas e da tomada de posse do Governo, achou oportuno revelar ao país, para surpresa generalizada, que “nada é eterno em democracia” e que o “Presidente tem o poder de dissolver o Parlamento”, num discurso visto à direita, conforme declarações ao Expresso, como “errático” (Miguel Morgado) e “repetitivo e inconsequente” (Diogo Feio). O líder do PSD, reagindo a um discurso presidencial que alertava para os riscos da ascensão da extrema-direita e dos “apelos a regimes autocráticos”, vislumbrou nele um estímulo à “criação de alternativas”, mas sentiu a necessidade de se afastar de uma possível ligação ao Chega, “que não existe, é uma ficção”. Já o primeiro-ministro, com aquele seu ar que combina a estóica paciência de Buda com uma persistente poker face, não resistiu a afirmar que “O sr. Presidente da República deve expressar aquele que é em cada momento o sentimento do país, o sentimento da nação. Nós não falamos. Nós agimos, fazemos, resolvemos.”

 

No entretanto, o país envolveu-se numa discussão académica acerca da noção de conflito de interesses, a cavalo de uma sucessão de notícias onde o sensacionalismo e o sentido de oportunidade jornalística se sobrepuseram à relevância e à consistência. Regressou a clássica dicotomia legalidade/ética, com leituras maximalistas apaixonadas desta última, sem que se tenha tornado evidente a necessidade de uma leitura equilibrada de cada caso, onde acima de tudo se coloque a transparência e o escrutínio. Em última análise, uma visão absolutista do conflito de interesses poderia ferir liberdades e garantias consagradas no plano constitucional.

 

Por fim, ao nível económico-financeiro, prossegue a novela da “folga orçamental”. Parece-me evidente que numa conjuntura de inflação em níveis históricos, uma possível recessão no horizonte e uma guerra na Europa com impactos económicos tremendos, seria aconselhável prudência na gestão das finanças públicas, procurando um equilíbrio difícil entre a prossecução da consolidação orçamental, os estímulos à economia e a salvaguarda do Estado social. Num país cuja dívida pública ronda os 120%, e cujo juro médio de emissão da mesma subiu de 0,6 % em 2021 para 1,3% este ano (e que já pagou 2,754% na última colocação de dívida a 10 anos), falar em “folga orçamental” é um erro de paralaxe. Convinha que no afã de mostrar apego e entusiasmo às inegáveis virtudes da alternância, políticos, jornalistas e comentadores evitassem cair numa realidade alternativa onde a semelhança com a ficção não é pura coincidência.

 

Imagem: Miguel Figueiredo Lopes/Presidência (sol.sapo.pt)

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2021
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2020
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2018
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2016
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2015
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2014
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2013
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2012
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  1. 2011
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub