QUE FAREI QUANDO TUDO ARDE?
Outubro 24, 2017
J.J. Faria Santos
O discurso do Presidente da República na passada terça-feira foi celebrado por todos os observadores, e justamente, como adequado no tom, no estilo e no conteúdo. Compassivo com as vítimas, brutal com os responsáveis políticos. Marcelo assinalou, e muito bem, que fazer reformas “a pensar no médio ou longo prazo não significa convivermos com estas tragédias”. Seria pois lícito deduzir que a forte censura ao Governo implícita no seu discurso se deveria a uma qualquer inércia governamental nesta área. Sucede, porém, que um artigo de Ângela Silva no Expresso trata de nos esclarecer que o Presidente discordava fortemente do primeiro-ministro em duas questões: a demissão da ministra da Administração Interna e a rapidez no pagamento de indemnizações às vítimas. A
tragédia do dia 15 terá servido de pretexto, “de gota de água para o murro na mesa”. Ter-se-á tratado, então, de uma manobra de reforço de poder com uma goleada no campeonato do afecto e da sensibilidade. Nada de ilegítimo, nem que permita duvidar da sinceridade da sua empatia e compassividade. Mas talvez seja demasiado precoce augurar que a profusão de imagens iconográficas, a sua vocação para Presidente-Pietà, o possa projectar para a estratosfera do desempenho do cargo presidencial.
“Todos sentimos a sua angústia, a sua aflição, o sentimento de desamparo com que viveram as últimas horas”, declarou António Costa, referindo-se às vítimas dos incêndios e às populações em geral. Todos? Bom, correligionários e adversários uniram-se na classificação de um discurso baço, burocrático e a roçar a insensibilidade. Descontada a surpreendente inabilidade política do primeiro-ministro, talvez seja um diagnóstico manifestamente exagerado. Se pensarmos que a sensibilidade à flor da pele de Constança Urbano de Sousa era frequentemente interpretada como fragilidade psicológica, insegurança e incapacidade de comando, é aconselhável uma perspectiva menos severa de quem tem de dosear a capacidade de liderança com o peso na consciência do falhanço das funções básicas do Estado, da desprotecção civil generalizada. É que quando o termo de comparação é o Presidente dos afectos, todos os outros protagonistas se afundam na frieza. E toda a frieza será castigada.
A propósito, o Expresso recorda que o comentador Marcelo Rebelo de Sousa, numa acção de campanha do PSD, na Maia, em Maio de 2015, traçou um breve mas incisivo retrato psicológico do actual primeiro-ministro: “António Costa parece que é, mas não é um homem de afectos. O António Costa engana, é um racional, um frio, ele não é empático.”
Na mesma edição, o jornal entrevista Carlos Blanco de Morais, professor catedrático que foi aluno e assistente do actual Presidente da República e que o conhece há décadas. Curiosamente, este também alinha algumas considerações acerca do temperamento do Presidente. E que diz ele? Que a psicologia de Marcelo é “muito fluida e por vezes volúvel”. E acrescenta: “Se há alguém que faz cálculos políticos e não actua emotivamente é o PR. A gestão de afectos faz parte da sua estratégia presidencial, mas a idiossincrasia do Presidente é fria e de jogador.”
Regressou o tremendismo à análise política. É como se o Diabo político tivesse mesmo chegado com as chamas de um inferno bem terreno. Que se quebrou o vínculo entre o Governo e os governados, que a cooperação institucional entre Marcelo e Costa jamais será a mesma. Como se o Presidente rejubilasse com um Governo assente num compromisso de centro-esquerda. Marcelo, apesar de uma (até agora) irrepreensível postura institucional, provém de um espectro político oposto. Os seus afectos habitam noutras paragens. As suas motivações não se limitam ao sempre flexível conceito de interesse nacional.
Quanto à forma como os portugueses avaliam o Governo, é cedo para avaliar a extensão dos danos. Que vai depender da capacidade de reacção e do retomar da iniciativa política. A conjuntura política é como o amor no poema de Sá de Miranda que inspirou o título deste post: “Não espera razões, tudo é despeito, / tudo soberba e força; faz, desfaz, / sem respeito nenhum; e quando em paz / cuidais que sois, então tudo é desfeito.” Na política como no amor, o que é desfeito pode ser refeito.