PLÁCIDO MAS NÃO FLÁCIDO
Agosto 20, 2019
J.J. Faria Santos
“Tens mesmo de ir para casa esta noite?”, repetia ao fim de cada dia de trabalho com a meio-soprano Patricia Wulf o charmoso e fogoso Plácido Domingo (sim, até as vítimas reconhecem o seu encanto), mais uma figura pública a ser acusada de assédio sexual no seguimento da onda #MeToo. É caso para dizer “Também tu, Plácido?” (#YouToo?). Na esteira de um libertino como Don Giovanni, protagonista de uma conhecida ópera de Mozart, o tenor forçava beijos em camarins, segurava afectuosamente as mãos das comensais em almoços de trabalho, acariciava-lhes os joelhos e até se aventurava em regiões demarcadas da intimidade, supostamente protegidas pela saia e pelo imperativo do consentimento.
Os testemunhos a que a Associated Press teve acesso, e que jornais portugueses como o Público e o I deram eco, traçam um cenário de contactos persistentes no período nocturno, no decurso dos quais Plácido Domingo se esmerava em demonstrar interesse pela carreira das suas interlocutoras e se apressava a propor encontros privados nos aposentos dele para aconselhamento profissional. Das nove mulheres que alegaram abuso sexual, apenas uma, Wulf, aceitou ser identificada. Convidado pela Associated Press a reagir às acusações, que segundo ele se reportam a situações ocorridas há mais de trinta anos, Domingo considera-as “graves” mas “imprecisas”. Disse-se convencido de que tudo se passara de forma consensual, mas reconheceu “que as regras e os standards pelos quais nos regemos – e devemos reger – hoje em dia são muito diferentes dos do passado.”
Nas denúncias, narram-se pormenores picarescos, um deles particularmente ofensivo para a mulher que acabou por ceder aos avanços do tenor por recear que a sua carreira fosse prejudicada. Conforme descrição do jornalista Diogo Vaz Pinto no jornal I, Domingo presenteou a mulher com uma nota de dez dólares, proclamando: “Não quero que te sintas como uma prostituta, mas também não quero que tenhas de pagar pelo estacionamento”. Como quem diz, isto não é uma remuneração-base; trata-se apenas de ajudas de custo.
O movimento MeToo, com todas as suas declinações, pode ter introduzido dificuldades acrescidas nas coreografias dos jogos de sedução, diminuindo a espontaneidade e aumentando a necessidade de garantias de consentimento. Como em muitas outras circunstâncias, presta-se a radicalismos e abusos. Porém, é impossível não reconhecer o seu papel de denúncia e libertação, bem como na criação de redes de solidariedade. Há 30 anos (ou há 20, ou há 10), Plácido Domingo não era, apenas e só, um homem viril e impetuoso em busca da satisfação dos seus legítimos apetites; mercê do seu prestígio pessoal e/ou dos cargos que ocupava, detinha o poder de destruir ou potenciar carreiras. E parecia fazer questão de o lembrar às mulheres que cobiçava. A confirmarem-se as denúncias, o tenor pode não acabar como Don Giovanni (consumido pelas chamas do Inferno) mas não escapará a uma censura severa por ter cruzado o assédio sexual com o abuso de poder.
Imagem: Wikimedia Commons